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Cantas mal, hein?

30 de Abril de 2025, por José Antônio

Em toda reunião de amigos ou de familiares, existe o desafinado. É uma figura complexa. Enquanto todos cantam harmonicamente, ele consegue achar prazer em notas desconectadas. E nem percebe que está avacalhando tudo.

O triste é que o desafinado é sempre uma pessoa legal. Solícito, alegre, dedicado... Às vezes, é o único que vai a todos os ensaios, com sua costumeira boa vontade. Até carrega instrumentos, se necessário.

Como, então, se livrar dele em serestas ou reuniões de Natal? Quando a questão é a participação em um coral, tem sempre lá aquele maestro com toda uma escala de argumentos técnicos que podem descartar o desafinado sem ofendê-lo. Mas, em corais improvisados e amistosos, como falar para o desafinado que ele não vai cantar justamente porque é desafinado? A coisa se complica ainda mais quando se considera a seguinte verdade: Todo desafinado gosta de cantar.

Uma boa alternativa de deixar o desafinado sem cantar seria encarregá-lo de tocar um instrumento qualquer. Mas o desafinado jamais toca instrumento algum!... Ou, quem sabe, incumbi-lo de cantar apenas no refrão, quando aparecer um lá-lá-lá-lá. No entanto, é nos refrões que o desafinado se esmera mais, tirando o couro do coro. E vai todo mundo para o buraco da dissonância.

Há uma última escolha – cruel – de pôr o desafinado pra escanteio: escalar o indivíduo para cantar todas as canções e mandá-lo ensaiar dois, três, quatro tons acima. No dia em que todos forem cantar, só o coitado estará rouco.

Dá dor de cabeça ficar sorrindo cordial enquanto o desafinado simpático canta...

Às vezes, o dito cujo desconfia que desafinou “um pouco”, e aí entra o nosso gênio inventivo, todo carregado de caridade, ao elaborarmos eufemismos para não magoar o desafinado, pois todo desafinado se magoa com facilidade:

– Você não desafinou. Você apenas canta numa tonalidade paralela.

(Tonalidade paralela... você já ouviu falar disso?)

Tem gente que consola desafinado assim:

– Você canta bem, só que numa tonalidade que nós ainda não alcançamos...

Essa última frase é revestida da mais sórdida quintessência do cinismo: se todos aprenderem a cantar na tonalidade da pauta que só o desafinado traduz, haverá um suicídio uníssono.

Enquanto a coisa não se resolve, o negócio é cantar sob a batuta da democracia. Afinal, todos têm o direito de se expressar.

... mas fica lá, no fundinho do coração, um desejo sincero... não sei se é ditadura sussurrada ou estética chauvinista: bem que podia ser todo mundo afinado numa mesma nota!

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