O Verso e o Controverso

Homenageando um dos maiores poetas do Romantismo brasileiro: Antônio Gonçalves dias (centenário de sua morte)

28 de Fevereiro de 2024, por João Magalhães 0

Nossa cidade se orgulha de ter excelentes poetas. Alguns poetando até em latim. Caso do Miled Hannas e do Zé Procópio. É justo, portanto, que se homenageie um dos maiores poetas, junto com Castro Alves, do Romantismo brasileiro, na minha opinião.

Lamento não ter aqui comigo a mais completa biografia de Gonçalves Dias, escrita por Lúcia Miguel Pereira. E peço desculpas ao leitor por citar muita coisa de memória que, óbvio, pode ter falhas.

Sobre sua biografia, apenas algumas pinceladas. Nos tempos atuais em que os indígenas são tão maltratados, abandonados e muitas vezes mortos, lutando por suas terras originárias, há que se lembrar de Gonçalves Dias, que, junto com José de Alencar, valorizou muito a cultura e os valores indígenas em suas obras literárias. Ele é o fundador da literatura indígena na poesia, como José de Alencar o é na prosa. São pioneiros. Ainda bem que com a nova política atual uma literatura com temas indígenas começa a aparecer!

Nasceu em Caxias, Maranhão, a 10 de agosto de 1823, e aí faleceu, afogado, em três de novembro de 1864, pois o navio francês Ville de Boulogne, no qual regressava de sua terceira viagem à Europa, naufragou no litoral do Maranhão.

Desde estudante de literatura brasileira no colegial, fiquei fascinado por ele. Copiava muitos poemas dele e até decorava alguns, como “Gigante de Pedra”, em que descreve um morro carioca. Cito a primeira estrofe: “Gigante orgulhoso de fero semblante/ Num leito de pedra lá jaz a dormir/ Em duro granito repousa o gigante/ Que os raios somente puderam fundir”.

Como a “Canção do Tamoio” primeira estrofe: “Não chores, meu filho/ Não chores que a vida/ É luta renhida/ Viver é lutar/ A vida é um combate/ Que os fracos abate/ Que os fortes, os bravos, só pode exaltar”.

Como “Y Juca Pirama”, considerado o mais perfeito poema épico indianista da literatura brasileira, desenvolvido em dez cantos, que focaliza o lamento do guerreiro tupi, preso em uma aldeia Timbira. Para quem não tem ideia, apresento duas estâncias: “No meio das tabas de amenos verdores? Cercada de troncos, cobertos de flores/ Alteiam-se os tetos d’altiva nação/ São muitos seus filhos, nos ânimos fortes/ Temíveis na guerra, que em densas coortes/ Assombram das matas a imensa extensão/ São rudes, severos, sedentos de glória/ Já prélios incitam, já cantam vitória/ Já meigos atendem à voz do cantor. São todos Timbiras, guerreiros valentes/ Seu nome lá voa na boca das gentes/ Condão de prodígios, de glória e terror!”

Como o mais conhecido de seus poemas, “A canção do exílio”: (“Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá/ As aves que aqui gorjeiam/ Não gorjeiam como lá/ Nosso céu tem mais estrelas/ Nossas várzeas têm mais flores/ Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida mais amores/ Em cismar, sozinho, à noite, mais prazer encontro lá/ Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o sabiá”).

Como “Marabá”: (“Eu vivo sozinha, ninguém me procura/ Acaso feitura não sou de Tupá?/ Se algum homem de mim não se esconde/ Tu és, me responde/ Tu és Marabá”.

Como a “Canção do Piaga” (“Ó guerreiros da Taba/ Ó guerreiros da Tribo Tupi/ Falam deuses nos cantos do Piaga/ Ó guerreiros, meus cantos ouvi/ Esta noite – era a lua já morta – Anhangá me vedava sonhar;/ Eis na horrível caverna, que habito/ Rouca voz começou-me a chamar”).

São alguns exemplos de poemas indigenistas, mas foi um poeta mais amplo. Cantou o amor, a natureza, a pátria, a religião.

Sua grande paixão na vida foi Ana Amélia, mas, por ser mestiço, a família proibiu o casamento. Essa proibição trouxe-lhe penosos sofrimentos, porém inspirou-lhe alguns poemas de amor: “Se se morre de amor”, “Minha vida e meus amores” e o mais célebre deles: “Ainda uma vez – Adeus”, quando o poeta se encontrou com ela em Portugal, ela já casada, em 1854. Eis uma parte da letra: “Enfim te vejo!/ Enfim posso / Curvado a teus pés dizer-te,/ Que não cessei de querer-te/ Pesar de quanto sofri/ Muito penei!,Cruas ânsias/ Dos teus olhos afastado/ Houveram-me acabrunhado/ A não lembrar-me de ti”.

Enfim, Gonçalves Dias foi um grande vulto de sua época. Além de literato, foi jornalista, publicando em vários jornais, fundando uma revista (revista literária Guanabara), professor de latim e História do Brasil no colégio Pedro II e oficial da Secretaria de Negócios Estrangeiros.

É o que penso. E você?

Centenário de nascimento de Maria Callas: escrevendo sobre ópera

25 de Janeiro de 2024, por João Magalhães 0

No dia 2 de dezembro de 2023, o mundo da ópera comemorou os cem de anos de nascimento de Maria Callas, uma das maiores sopranos do século vinte. Maria Cecília Sofia Anna Kalogeropoulu, descendente de família grega, nasceu em Nova Iorque a 2/12/1923 e faleceu em Paris a 16/9/1977. Quando ingressou no mundo lírico, adotou o nome de Maria Callas.

Além de soprano, Callas foi também grande atriz de cinema, como o confirma o filme “Medeia”, de Pier Paolo Pasolini, no qual ela desempenha o papel da própria Medeia.

Nosso jornal, com 20 anos, ao que eu saiba nunca publicou nada sobre ópera, embora haja pessoas que a curtem. E cito nosso editor-chefe, André, nosso colunista Edésio e o Rosalvo, que infelizmente já “partiu”, a quem dedico estas linhas, lembrando os momentos em que fomos juntos ao Palácio das Artes, em Belo Horizonte, assistir a montagens de óperas. Fica ainda em minha memória a montagem espetacular dos “Pescadores de Pérolas”, de Georges Bizet (1838-1875), sobretudo o belíssimo dueto tenor/barítono de Nadir e Zurga: “au fond du temple saint”.

Meu fascínio por ópera, quase um fanatismo, começou muito cedo. Em 1952, quando entrei para o seminário (tinha 12 anos), os dois primeiros anos de ginásio eram no seminário menor dos padres camilianos, em Yomerê, distrito da cidade de Videira, no oeste do estado de Santa Catarina.

Só ia-se lá de trem, que demorava 2 dias ou mais para chegar. Nas férias, os seminaristas de lá iam para as próprias casas. Nós, paulistas e mineiros, ficávamos no seminário e os padres possibilitavam nossa frequência à biblioteca, onde podíamos ler ou ouvir músicas nos discos 78 rotações que havia lá.

Quando ouvi a abertura da ópera de “La gazza ladra”, de Gioachino Rossini (1792-1868), fiquei encantado. A melodia ficou em meus ouvidos muitos anos. Mais tarde, já em São Paulo, meu professor de literatura italiana, padre Ettore (Heitor) Nicolodi, que tinha discos de ópera, emprestou-me a “Cavalleria Rusticana”, com regência do próprio compositor, Pietro Mascagni, o tenor Beniamino Gigli, o barítono Gino Bechi, entre outros. Depois emprestou-me “Il Rigolletto”, de Verdi. A ária “tuttele feste al tempio” me marcou. Até hoje consigo solfejá-la. O coral do seminário vem reforçar quando ensaiávamos o “Va Pensiero”e “La Vergine degli Angeli”de Verdi.

Mais tarde começo a ouvir e gravar o programa “Cortina Lírica”, com o maestro Armando Belardi (1898-1989), na rádio Gazeta. Com o regente Benito Juarez, da Orquestra Sinfônica de Campinas, Carlos Gomes vem à toda com suas óperas.

Daí para diante acompanho a carreira dos grandes intérpretes. Dezenas de tenores, barítonos, baixos, sopranos, mezzo-sopranos, contraltos. Cheguei a gravar numa fita-cassete a grande ária da ópera “Tosca”, de Giacomo Puccini, “E lucevan le stelle”, com 7 tenores diferentes!

Dos mais modernos, José Carreras, Placido Domingo, Pavarotti, nem se fala. Quando Pavarotti veio pela primeira vez ao Brasil, fui assistir ao show dele. Tenho o programa até hoje.

Ópera assistida tem que ter legenda. Ópera ouvida precisa ter o libreto. Quando estive na Itália, comprei todos os libretos que achei. Encontrei muitos.

Faço minha a escrita de Nelson Rubens Kunze, editor da revista “Concerto”, ao apresentar o volume sobre a “A Ópera Tcheca” do mineiro de Belo Horizonte Lauro Machado Coelho (1944-2018), a meu ver o maior crítico musical e historiador da ópera que o Brasil já teve. Publicou, pela Editora Perspectiva, em 11 volumes, a história da ópera.

“Reunindo música, teatro, literatura, arquitetura, artes plásticas – a ópera é talvez a mais abrangente das criações, um caldeirão de emoções que representa, no palco, as mais variadas situações que o homem atravessa em sua vida.

Não é à toa que as mitologias, dos antigos gregos às lendas germânicas, enredos históricos ou tradições enraizadas no subconsciente, de riqueza e interpretações inesgotáveis, sejam o grande manancial temático dessas produções artísticas. Se a isso somarmos a realidade política e social na qual a obra de arte está inserida, os anseios e circunstâncias vividos pelo compositor, tem-se uma ideia de sua enorme complexidade.

 E o fato de a ópera ser, com seu irresistível apelo emocional, uma das mais populares manifestações da cultura universal, só faz ampliar o grau de sua complexidade. Não resta dúvida de que, por sua dimensão plural e multifacetada, a ópera é o espaço privilegiado para retratar, desvendar, questionar ou exaltar artisticamente – de modo realístico ou alegórico – os mistérios da alma e da existência humana”.

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Natal: as visitas ao recém-nascido

20 de Dezembro de 2023, por João Magalhães 0

As festividades do Natal marcam o mundo cristão, e o mundo comercial com muita antecedência começa a propagá-las. Como o ser humano se hominiza dando sentido a seus atos, deixando de ser autômato, acho eu, é necessário dar um sentido próprio a estas solenidades comemorativas.

O nascimento de uma criança, de modo especial um filho muito aguardado, costuma ser muito comemorado, muito festivo. O grupo familiar é o primeiro a acorrer para conhecer o recém-nascido. Um recém-nascido é sempre uma esperança de uma situação melhor. Até rima: criança/esperança.

E com Jesus recém-nascido, isso aconteceu?  Minha fonte para esse comentário são os, assim chamados pelos estudiosos, Evangelhos da Infância, de Mateus e de Lucas. Os Evangelhos de Marcos e de João dedicam-se mais à fase adulta de Jesus e à sua vida pública.

Na narrativa de Lucas (2,1-20), embora tenha nascido em condições precárias por seus pais não haverem conseguido um alojamento decente e terem que se abrigar num refúgio de animais, seu nascimento não deixou de ser festivo. Comemorado pelos anjos, que logo avisaram os pastores da região que, à noite, vigiavam o rebanho. Foram os primeiros humanos a visitarem o recém-nascido. E qual foi o efeito? Saíram felizes, “glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20).

Outros visitantes foram os reis magos. Agora, a narrativa é de Mateus (2,1-12). Orientados por uma estrela guia, chegam a Belém e deixam presentes preciosos a Jesus recém-nascido: ouro, incenso e mirra. Na proposta messiânica de Mateus, a visita destes estrangeiros mostra que Jesus nasceu para o mundo todo. Os presentes dados seriam a origem da tradição de presentes de Natal às crianças? Talvez, sim. A visita dos magos deixou consequências trágicas para as crianças, da parte do sanguinário Herodes (Mt 2,16-18).

Visita emocionante foi a do justo e piedoso Simeão. “Movido pelo Espírito, ele veio ao Templo e, quando os pais trouxeram o menino Jesus para cumprir as prescrições da Lei a seu respeito, ele o tomou nos braços e bendisse a Deus, dizendo: “agora, soberano Senhor, podes despedir em paz o teu servo” (Lc 2,27-29).

Visitou-o também, no mesmo local e ocasião, a profetisa Ana. “Como chegasse na mesma hora, agradecia a Deus e falava do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém”.(Lc2,38).

Festa de aniversário inclui sempre alegria. A festa religiosa de aniversário de Jesus popularizou-se tanto que até folclorizou-se. Cada povo inseriu nela seus costumes, seus modos de comemorar. No Brasil, a missa do galo é um exemplo. Na minha infância, a nós pobres do Tijuco, aqui em Resende Costa, a única comemoração possível do Natal era assistir à missa do galo, à meia noite!

No entanto, no caso do Natal, é importante não se esquecer das posturas e lições do aniversariante. O núcleo da pregação de Jesus é a promoção do ser humano enquanto pessoa. O acolhimento e o afeto que ele deu às crianças têm que ser realçados em todo Natal.

Numa festa de aniversário da criança Jesus, é triste ver milhares de crianças abandonadas, crianças desnutridas ou passando fome, crianças sofrendo violências, crianças discriminadas pela cor da pele, crianças morrendo por não serem vacinadas, crianças órfãs que esperam uma adoção que nunca chega por causa da burocracia, crianças sem escola, crianças exploradas sexualmente, crianças forçadas ao trabalho infantil, crianças reféns ou mortas pela guerra, crianças moeda de troca etc.

É o que penso. E você?

 

Observação: Neste ano, completam-se 800 anos da criação do presépio por São Francisco de Assis, no Natal, em uma gruta na cidade de Greccio, em 1223.

O feriado da Consciência Negra (20 de novembro)

22 de Novembro de 2023, por João Magalhães 0

A lei federal 12.519 de 2011 instituiu o dia 20 de novembro como o Dia Nacional de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra. Não transformou a data em feriado nacional, mas possibilitou aos estados e municípios decretarem o feriado. Alguns estados e vários municípios já o fizeram. A data é para rememorar a força, a coragem, a resistêcia e o sofrimento que a população negra passou desde os tempos da escravidão... e passa até hoje.

Internet ligada, vi o nome de uma revista que me chamou a atenção: “TRANS/FORM/AÇÃO”. Abri. É a Revista de Filosofia da UNESP (Universidade Estadual de São Paulo). Neste número (outubro-dezembro de 2023), uma publicação com o título:“A colonização é aqui e agora: elementos de presentificação do racismo”.

A expressão “A Colonização aqui e agora” é baseada no líder indígena Ailton Krenak (*29/9/1953, Itabirinha/MG), merecidamente eleito recentemente na Academia Brasileira de Letras para a vaga do recém-falecido José Murilo de Carvalho (*8/9/1939, Andrelândia/MG; +13/8/2023, RJ).

Desse trabalho acadêmico e muito baseado em alguns autores negros eruditos, tiro algumas afirmações para incrementar a luta contra o racismo, sobretudo o racismo negro que é o mais praticado aqui em nossa terra.

A guerra contra o racismo é necessária. Precisa de punição e punição está na eficácia da lei. E lei para isso já existe: Lei 7.716/1989 – Lei do Racismo; e Lei 14.532/2023, cuja principal novidade é que agora a injúria racial passa a ser equiparada ao crime de racismo. Sendo assim, passa a ter pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa. Além disso, agora, os crimes de injúria racial são imprescritíveis, ou seja, podem ser julgados em qualquer tempo, independentemente da data em que foram cometidos.

Precisa de muita luta, pois, como mostra a séria pesquisa da faculdade baiana de direito ( Jornal da TV  Cultura, 24 de outubo de 2023), a punição, quando existe, é muito branda, sendo que na maioria dos casos o juiz é complacente. A certeza de impunição é que alimenta o racismo. “O racismo, enquanto problema estrutural e estruturante de nossa sociedade, afeta-nos cotidianamente de formas muito profundas e nem sempre visíveis”. Endosso esta frase do texto da revista, acima citada.

E volto a citá-la: “Nesse sentido, o presente texto parte da pergunta fundamental: como o racismo se faz presente, nos dias de hoje? E a desdobra em outras perguntas, que giram em torno desse eixo central. São elas: por que temos dificuldade em perceber esse problema? Como o racismo e o capitalismo se relacionam historicamente? Como esse problema afeta, em especial, as mulheres negras, as quais estão na base da pirâmide do sistema”?

Para tentar dar conta dessas perguntas, mesmo intelectualmente, há muito a se fazer. A começar pela identificação e recriação da conduta e pensamento viciados que relegam o ser negro, ser indígena e ser periférico à condição de não ser.

“O presente artigo tem por objetivo analisar os modos a partir dos quais o racismo se faz presente, em nossa sociedade, enquanto Sul Global e herdeira do sistema escravista. Sendo esses modos muito diversos e impossíveis de serem tratados de maneira completa, foram definidos aqui três eixos principais para abordá-los: 1) a colonialidade como base da modernidade (colonialidade é um conceito que se refere aos efeitos duradouros e estruturais do colonialismo nas sociedades contemporâneas. Portanto, mantém-se após a experiência colonial); 2) a precarização da força de trabalho no neoliberalismo; e 3) as imagens paradigmáticas e aprisionadoras da mulher negra, na sociedade brasileira”.

Quanto ao terceiro item: as imagens paradigmáticas da mulher negra, na sociedade brasileira: mulata, doméstica e mãe preta, há uma palestra-performance (“Descolonizando o Conhecimento” MIT, SP 2016) da portuguesa Grada Kilomba (negra) onde ela fala: “Há esta anedota: uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa”.

Num jogo simples com a plateia, Grada Kilomba demonstra o silenciamento imposto pelo sistema racista. Pediu aos espectadores que conversassem entre si por alguns minutos enquanto ela continuaria a palestra. A situação de falar e não ser ouvida que se estabeleceu então no teatro é análoga à condição de silenciamento de sujeitos na sociedade. Não lhes é concedida a escuta.

É o que penso. E você?

Festa do Rosário

25 de Outubro de 2023, por João Magalhães 0

Adro da Igreja do Rosário de Resende Costa num dia de festa. Presença do reinado do Rosário e, ao fundo, a imagem de N. Sra. do Rosário (foto JL)

Nosso jornal, este ano com 20 anos de idade, continua com um dos seus propósitos: a memória histórica de nossa cidade. Para uma época em que não havia telefone, internet com suas redes, celulares e, em vários locais, nem luz elétrica... e só havendo raras máquinas fotográficas, a memória histórica depende praticamente das recordações e vivência dos mais idosos.

Minhas reminiscências sobre a Festa do Rosário em Resende Costa são dessa época. São poucas, pois vivi no Tijuco, onde nasci, só até os 12 anos. Depois fui para o Seminário no Sul do Brasil, estado de Santa Catarina. Mais tarde, quando meu irmão foi presidente da Irmandade do Rosário, participei de algumas festas.

Depois da Semana Santa, era a festa mais frequentada pelos moradores da roça. Lembro-me dos reis e rainhas, do jogo das argolas e, sobretudo, da apresentação dos ternos de dançantes, dos congados que vinham da rua 7 de Setembro etc.  A missa era sempre dentro da igreja do Rosário. Nunca na praça. Não existia o mar de barracas como hoje, em que festa está muito diferente.

Suponho que uma forma de valorizar a Festa do Rosário é falar sobre a importância da Irmandade do Rosário.

O culto a Nossa Senhora do Rosário é antiquíssimo. Começa a ser propagado no século XIII, introduzido por São Domingos de Gusmão, fundador das Ordem dos Pregadores (Dominicanos) e, por consequência, muito divulgado pelos frades dessa Ordem.

Em 7 de outubro de 1571, houve, no golfo de Lepanto, a batalha naval que impediu a invasão da Europa católica pelas forças do muçulmano império turco-otomano. Diz a biografia do papa São Pio V, que era dominicano, que ele rezava o rosário durante a batalha, estando em Roma. Como agradecimento à Virgem Maria pela vitória sobre os turcos, instituiu a festa de Nossa Senhora do Rosário, marcando-a para todo o dia 7 de outubro.

As irmandades ou confrarias criadas pela devoção a Nossa Senhora do Rosário surgiram em Lisboa, no século XV, e rapidamente se espalharam pelas colônias de Portugal. No Brasil, chegou no século XVI, com a fundação da Irmandade dos Homens Pretos de Olinda, e foi utilizada pelos jesuítas e franciscanos como um forte meio de evangelização e também controle da população, sobretudo a mais carente.

As Irmandades do Rosário vão se firmando e caracterizando-se pela abertura. No seu início, quando eram compostas de brancos e negros, sendo os brancos a maioria, cabiam a eles os cargos administrativos e a liderança. Com o transcorrer do tempo, os negros, escravos ou livres, africanos ou brasileiros, passaram a ser maioria e tiveram uma boa autonomia.

As Irmandades do Rosário dos Homens Pretos tinham especial importância. Além das práticas devocionais e com um programa de festividades que fomentava a interação entre as pessoas, a socialização, reintegrando, inclusive, vínculos familiares perdidos, havia, também, apoio e auxílio: assistência prestada a escravos e libertos em situação de dificuldades e doenças, garantia de enterros em locais sagrados, missa e orações para as almas dos falecidos. É bom lembrar: os escravos eram enterrados em covas rasas e coletivas, sem os ritos fúnebres. Daí, o crescimento dessas irmandades. Passaram a ter igrejas próprias em muitas cidades: as igrejas do Rosário.

Concluo com a opinião de Fabrício Forganes Santos, mestre em Arquitetura e Urbanismo e professor no Museu de Arte Sacra de São Paulo, expressa em seu livro recém-lido:“As três igrejas dos homens pretos de São Paulo de Piratininga”: “Uma das hipóteses sugeridas por alguns autores estudados era a de que os negros buscavam as irmandades católicas para serem  reconhecidos enquanto cidadãos, gozando de todos os privilégios civis, dentre eles o da livre circulação pelo espaço urbano ou da aquisição de imóveis.”

E continua: “O deslocamento forçado, o banimento desses grupos de acesso às melhores oportunidades – estratégias de atualização do colonialismo – ampliaram ainda mais a desigualdade social entre pretos e brancos, acentuando e estruturando o racismo na sociedade brasileira que deu origem ao contexto observado na contemporaneidade, em que negros são abordados com truculência, agredidos ou mortos por transitar em ruas de comércio de luxo, por fazer compras em supermercados ou em shoppings, e até por circular em parques com bicicletas, constantemente acusados de supostos delitos que na maioria das vezes não são comprovados. Quanto ao costume de olhar uma pessoa negra e antever sua incapacidade de estar naquele ambiente ou realizando aquela atividade, imputando-lhe uma conduta apenas pela cor da pele, no ano de 2021, não nos resta mais dúvidas sobre a violação: ela se chama Crime de Racismo.”

Faço minhas essas palavras. É o que penso. E você?