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Dom Baiano e suas duas mulheres

31 de Julho de 2024, por Evaldo Balbino

Era nobre o Baiano, superior mesmo. No trato com as pessoas, no modo de andar e conversar. Já idoso na verdade, mas creio que o seu andar lento era um modo de respeito. Falava pausadamente. Com simplicidades, porém sempre nos seus paletós engomados, calça e sapato lustroso. Dentes raros na boca que não se fechava, faladora e alegre. Sempre em movimento no contar casos e rir com vontade para o mundo.

Ele vivia com duas mulheres, uma irmã da outra. As duas com o seu único marido. Uma, quieta, calada, raramente vista por mim e muito fechada em si mesma. A outra, alegre, bonachona, expansiva na fala e nos gestos, o corpo todo forte se balançando. Ambas de idade também avançada. E as duas e o marido avançando pela vida.

Poligamia?! Isso não existe para certos mundos, para pessoas que vivem à margem de leis humanas feitas a esmo delas. Se havia papel passado nesse caso? Por certo não. Talvez houvesse um só matrimônio registrado. O outro, paralelo e consentido: pelo menos era o que se sentia no trato que se via entre os três.

Eu brincava bastante com a esposa comunicativa. Ela ia junto ao marido para fazer compras ali onde eu era caixeiro, atendente, repositor de mercadoria em prateleiras, um pouco contador, carregador de sacos para o depósito, levador de botijões de gás para as casas vizinhas, instalador dos botijões perante os olhos de donas de casa receosos de uma explosão.

O que explodiam mesmo eram as risadas da Aninha, uma das duas esposas do Baiano. Cabelos crespos guardados por um lenço, este arrebanhado na nuca e amarrado num laço firme. Sempre de blusas longas e calças jeans, uma aliança imensa no dedo anular. Seu corpo era feliz por natureza. Um gingado no andar, um bamboleio de olhos e bocas, de gestos e palavras. Aninha andava como se estivesse dançando. Muitas vezes passava sozinha pelo armazém e conversava com este caixeiro que eu era e ria e me fazia rir, e me alegrava o dia e a vida.

O Baiano nunca passou sozinho por mim, mas sempre acompanhado pela Aninha ou pelas duas esposas. Isso, mensalmente, quando, de posse do seu ordenado de aposentadoria, fazia as compras para a casa de três pessoas. Tinham filhos? Não sei dizer. Só sei que as compras eram fartas.

Açúcar para dar e vender, café para bocas sequiosas, sal de dar gosto na comida, banha de porco empacotada aos montes, caixas de fósforo, muito querosene, mortadela, queijo, sabão em pedra, água sanitária, fumo em rolo, pacotes de fumo Sabiá, retroses, pacotes de farinha de trigo, idem para farinha de mandioca e de milho, pães (não se importavam com o fato de que esses pães ficavam murchos no passar dos dias), fubá a granel, goiabada, doce de leite em barra... E a lista seguia desenvolta a encher caixas de papelão, que eram levadasna carroceria de uma caminhão de leite para um dos povoados do município.

A compra de fora do armazém esperava pelo caminhão, e a prosa gostosa e calma dos três. O garnisé tá batendo no galo índio. Qual dos dois deixar no terreiro, se a gente quer as duas raças? As galinhas gostam dos dois: que se entendam! Tem que encher as lamparinas ainda hoje. Amanhã no jirau o queijo vai secar direito se tiver sol. A roupa no varal vai molhar se chover. E assim continuavam as falas para o meu ouvido amante.

Quando o veículo empoeirado chegava e não tinha outro cliente para atender, eu ajudava o motorista a subir com quase tudo. O marido e as mulheres não tinham força para isso.

Em todo esse processo de compra, eu mais gostava mesmo era do ritual que logo de início o Baiano realizava. Chegava-se a mim, enfiava a mão no bolso da calça e de lá tirava umas notas poucas e graúdas: “Moço, troca pra mim tudo em nota da mais miúda?”. E eu trocava.

Com o bolo de dinheiro na mão, ele ia contando cédula por cédula, o polegar e o indicador deslizando com gosto, de vez em quando o dedo indicador indo à boca para pedir ajuda do cuspe na tarefa de separar os papeizinhos coloridos. Os olhos brilhando de contentamento no contato com o bolo imenso dentro das mãos em concha, mesmo que sendo um salário apenas. E como rendia esse salário! Dom Baiano contava as notas não era para conferir se eu tinha dado o dinheiro certo não. Fazia isso por prazer.

E lá iam os três no caminhão. Levando alegria e vida, e deixando também as duas comigo.

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