Qualquer ato de fé é um movimento íntimo. E uma conversa mineira assim se perfaz. Quando escrevo, estou conversando com os meus e com os demais. E meus textos ganham, assim, o sabor de beira de fogão a lenha, o aroma das cantigas, da oralidade. E tudo isso me salva, pois me dá uma sensação de pertencimento. Pertencer é uma segurança na existência. Digo isso, mesmo sabendo das impossibilidades. Eis, então, que surge o poder da escrita, dessa linguagem poética que erige para mim uma salvação. Enredos e tramas, imagens e fios me conduzem pelos descaminhos da vida.
Nasci e fui criado no interior mineiro, mais especificamente na zona rural do município de Resende Costa/MG – no povoado Ribeirão de Santo Antônio. Fui criado à luz de lamparina, sem eletricidade, à beira de cachoeiras e entre grotas. Não acredito que um sujeito seja fruto do meio – esse pensamento não é científico e é ultrapassado. Mas creio piamente que um indivíduo pode fazer escolhas. E escolhi me apropriar do que, na minha formação, me é caro. Assim minha escrita se produz: escrevo no permeio de cantares, atravessado pelo tom de conversa que, desde pequeno, foi atravessando minha vida como um rio confesso. Nas minhas linhas, crepita o contar de casos e de causos à beira do fogão a lenha ou tomando a fresca no fim de tarde. Daí o caráter narrativo de muitas das minhas crônicas: um contar, um enredar de tradição dum narrador que vive, que experiencia, que sonha o vivido e que conta.
O mineiro, no final das contas, é muito apegado às tradições, à família. Digo do apego bom, daquele que, sem peias e correntes de tradicionalismo, nos dá a sensação de estarmos em casa. Nada na vida é paraíso. Mas essa consciência não me atordoa e não me inibe de construir paisagens no deserto, mesmo que elas sejam frágeis e belos móbiles. Nesta minha roda cabem tios, avós, irmãos, pai e mãe. Escrevo junto ao meu clã. Escrever sobre os meus, e entre eles, me é uma dádiva. Viver o dia a dia é o que temos para fazer. Historio sobre os meus e até mesmo sobre alguns que não conheci pessoalmente, mas a partir do ouvir falar, do que me contaram. Ninguém na existência foge disso. Até mesmo o maior lunático não foge dessa raiz que nos rodeia. Quando pensamos que nossos pés tocam a Lua, na verdade eles estão arraigados na Terra, introjetados nela. Nossos sonhos brotam de nossas vivências.
Imerso na consciência dos móbiles, belos e frágeis, tenho claro que a escrita é representação. Tudo é recorte do meu olhar, discurso que se erige sobre algo, pois o outro e a coisa em si são inalcançáveis ao nosso entendimento. Nem nós mesmos nos alcançamos. Desse modo, recriamos o já criado, discursamos sobre o mundo ao nosso redor e, mais do que tudo, sobre o mundo em constante construção dentro de nós.
Escrevendo, mergulho na poesia. Ela é a água que bebo, a minha estrutura, o meu fundamento. O poético é indubitavelmente religioso. Porque o nível de experiência é sempre o mesmo, o do religare. Do mesmo modo que me religo ao sagrado pelos rituais instituídos nas religiões, assim também a poesia me faz retomar o acesso a Deus. Ler um poema é orar, mesmo que seja um poema subversivo e até mesmo questionador das instituições religiosas. As palavras em estado poético nos colocam em transe, louvam a Deus pelo viés da beleza. Falo aqui da beleza estética. Dessa beleza que, mesmo representando o horrendo, me deixa em êxtase. E como é bom escrever, ler e declamar poesia!
O ato de declamar é uma performance parecida com a oração. Elevar a voz acima do comum, do banal, me torna um ser capaz de tudo o que é maior. Orações são verdadeiros poemas, trabalhados ou improvisados, não importa. Na tradição judaico-cristã, por exemplo, sabemos que os salmos são verdadeiras orações e verdadeiros poemas. A leitura do poema e a sua declamação sempre nos levam ao fora do comum, porque nesse momento não estamos usando a linguagem com o puro objetivo comunicacional; buscamos aí algo mais, o agrupamento das palavras, o casamento e a dissonância dos fonemas, a atração e a repulsão das letras entre si; enfim, um ritmo outro, outra respiração, a que nos pega dos pés à cabeça e nos revela o mundo de modo mais intenso.
Nessa conversa que se perfaz no meu pequeno vasto mundo, o mundo inteiro ressoa no que digo.