O restauro pela UFSJ dos bordados de João Cândido, líder da Revolta da Chibata

As duas toalhinhas bordadas pelo marinheiro na prisão da Ilha das Cobras (Rio de Janeiro), há mais de 100 anos, estão em exposição na Bienal de São Paulo.


Cultura

José Venâncio de Resende0

Painel com os bordados na Bienal de SP (foto: secretário de Cultura e Turismo, Marcus Frois).

Duas toalhinhas, bordadas com os temas O adeus do marujo e Amôr (sic), que pertenceram ao gaúcho João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata no início do século 20 e conhecido como o Almirante Negro, já têm quilômetros rodados. Foram levadas do Rio de Janeiro para São João del-Rei por Antônio Manuel de Sousa Guerra, vulgo Nequinha, e agora encontram-se em exposição na 34ª Bienal de São Paulo até 5 de dezembro.

Nequinha ganhou os “toscos” bordados do marinheiro João Cândido, na ocasião em que era praça do 51º Batalhão de Caçadores de São João del-Rei e o batalhão foi chamado, em 1910, ao Rio de Janeiro, para auxiliar no policiamento da cidade e encarregar-se da guarda dos presos da Ilha das Cobras envolvidos com a Revolta da Chibata. Um dos presos era João Cândido, que liderou a rebelião contra o uso da chibata (castigos corporais) e outros maus tratos praticados pela Marinha brasileira. As toalhinhas foram doadas para o acervo do Museu Municipal Thomé Portes del-Rei e tombadas pelo patrimônio municipal como bens culturais.

Nequinha confidenciou ao escritor mineiro José Murilo de Carvalho  que fez amizade com João Cândido e até levava jornais, às escondidas, para ele ler na prisão. Também contou ao imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) que estranhava ver o grandalhão e temido marinheiro passar grande parte do seu tempo bordando. No começo dos anos 1970, o Almirante Negro foi imortalizado pelos compositores João Bosco e Aldir Blanc com a canção “O Mestre-sala dos Mares”, a história do Almirante Negro e da Revolta da Chibata, vetada pela censura por trazer à tona um assunto proibido pelas Forças Armadas.

Restauro

Os bordados foram restaurados por Saul Ferdinando de Oliveira Carvalho, do LABDOC (Laboratório de Conservação e Pesquisa Documental) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), mediante convênio assinado com a Prefeitura Municipal. “Em 2019, o LABDOC foi procurado pelo Ministério Público para avaliar o estado de conservação de algumas obras do patrimônio histórico de São Joao del-Rei, entre elas dois bordados de João Cândido, datadas do início do século XX. Após esta avaliação, foi averiguada a necessidade de restauração de tais obras.”

A Prefeitura forneceu o material necessário para o restauro, bem como uma moldura adequada para a exposição das obras, com distância entre o vidro e as obras e material inerte como suporte (material que não exala gases ácidos, responsáveis pela deterioração das obras dentro de molduras). O LABDOC entrou com a mão de obra especializada, sem qualquer custo, conta Saul.

No início do processo de conservação e restauro, os dois bordados encontravam-se em molduras de madeira com fundo de Eucatex e com vidro na parte da frente, revela Saul. “Havia cupins e traças na madeira e a Eucatex, por ser um material ácido, estava prejudicando os tecidos ali montados. Os tecidos bordados apresentavam amarelamento por acidez, furos causados por insetos, manchas de sujeira possivelmente provocada por água e sinais de desgaste pelo tempo.” A acidez foi “causada por diversos fatores, como o contato com a placa de Eucatex, sujeira e manipulação manual dos tecidos ao longo dos anos, além do provável contato com água suja, uma vez que observamos manchas marrons características de umidade nos tecidos”.

As obras foram desmontadas e foi realizado procedimento de desacidificação dos tecidos, explica Saul. Este procedimento é “importantíssimo” pois, uma vez removida a acidez, “os tecidos ganham sobrevida e é interrompido o processo de degradação das fibras têxteis provocado por tal acidez. Em seguida, os furos no tecido foram fechados de maneira discreta com tecido equivalente, no caso algodão, de modo a manter o padrão estético da obra”. Na última etapa, foram executados procedimentos de limpeza pontual das obras, que foram montadas em suportes feitos com material inerte, como papel alcalino. Em seguida, foram colocadas em molduras adequadas, também com material inerte, isentas de cupins e outros insetos e com o vidro distante da obra, o que impede o atrito entre vidro e obra.

Pandemia

O trabalho de restauro, que começou em meados de fevereiro de 2020, sofreu atraso devido à suspensão das atividades na Universidade por causa da pandemia, mas foi concluído a tempo da exposição em São Paulo, conta Saul. “As obras foram restauradas com segurança e devolvidas à Prefeitura Municipal de São João del-Rei em setembro de 2020, livre de insetos e acidez, com a sujidade removida dentro do possível (sem comprometer a estabilidade e segurança do material) e montadas em molduras adequadas, a fim de manterem as obras seguras e em bom estado de conservação por diversos anos.”

O trabalho de conservação e restauro permitiu, assim, minimizar os processos de degradação dos bordados provocados pelo tempo, como por exemplo a sujeira e a acidez, enfatiza Saul. Também garantiu a estabilidade para as fibras do tecido. A realização das “mais discretas intervenções possíveis” garante que a obra “tenha condições de perdurar pelo máximo de tempo possível. Também as intervenções não visaram em momento algum alterar as marcas do tempo nos bordados de João Cândido, entendendo que tais marcas fazem parte da história das obras; isto é, de maneira alguma o restauro buscou devolver às obras um aspecto de novo, como se elas tivessem sido feitas há poucos anos. Buscou-se apenas interromper, dentro do possível e sem comprometer a integridade dos mesmos, o que estava danificando os bordados”, conclui.

O LABDOC

O LABDOC, que pertence ao Departamento de Ciências Sociais da UFSJ, funciona desde 2015 no primeiro andar do CEDOC (Centro de Referência em Pesquisa Documental), prédio construído no Campus Dom Bosco em São Joao del-Rei. Foi aparelhado com o financiamento da FAPEMIG e do Conselho Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos do Ministério da Justiça, constituindo-se no que há de mais moderno e eficiente nas áreas de conservação e pesquisa documental. Também contou com a parceria do Arquivo Público Mineiro.

Desde sua criação, o LABDOC já recuperou diversas documentações como os acervos dos Fóruns de Oliveira, Itapecerica, Conselheiro Lafaiete e Formiga em Minas Gerais e da Fundação Koellreutter (fontes documentais de naturezas diversas, biblioteca e partituras diversas), além de diversos acervos menores e obras individuais do Patrimônio Histórico Mineiro.

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