Eu estava na minha, juro que estava. Aliás, ando ultimamente tão na minha que, se eu caísse no mar, a última coisa que eu iria perceber seria a água.
Por isso não entendi aquelas provocações gratuitas do outro lado da calçada. Eram pra mim que elas se dirigiam. Que mal eu tinha feito a ele? Fiz que não estava nem aí e continuei meu itinerário. Na minha. Mas as provocações continuaram. Intensificaram-se até.
De repente, ele atravessou a rua e veio vindo em minha direção, provocando-me. Desafiava-me para qualquer coisa. Deveria estar me ofendendo também, mas eu não conseguia decifrar a sua língua. Diga-se de passagem, linguajar limitado e sem criatividade, repetindo sempre o mesmo bordão irritado.
Cismou comigo do nada. Antipatia gratuita mesmo.
Não foi com a minha cara aquele cachorro preto e peludão. Não sei o que ele viu em mim pra ficar com tanta raiva... ou revolta. E como latia o danado!
Parei numa vitrine pra suavizar a situação. Quem sabe assim o bicho iria embora? Qual o quê! Ele parou ao meu lado e ficou olhando pra cima, na direção de meus olhos, e latindo muito. Aquilo já estava chamando a atenção dos outros.
O pior é que outros bichos também começaram a se juntar à cena, deixando tudo ainda mais complicado. O primeiro foi o mico. O outro bicho que chegou foi a pulga, que se alojou atrás da orelha de quem observava a cena. Veio um sapo também, mas eu não iria engolir: tratei de espantar o cachorro estressado.
Foi embora. Parou lá na frente, perto de uma esquina. Ficou latindo de longe.
Então, veio-me à lembrança a sabedoria do meu pai quanto à diplomacia com os bichos: “Se você quiser ganhar a simpatia de um animal, dê comida a ele.”
Saí da lanchonete com uma empadinha de frango e agachei, colocando-a no chão. O cachorro não pensou duas vezes: veio correndo e abanando o rabo. Comeu tudo e ainda lambeu o chão.
Resolvi a situação? Piorou. O bicho não podia me ver que já vinha logo fazendo festa. E me abordava nos lugares mais variados: posto de gasolina, fila da lotérica, padaria (mais empadinhas), banheiro da rodoviária... Às vezes eu saía de mansinho... outras vezes eu saía de repente. Sempre o despistava.
Havia já uns meses que eu não via o tal do cachorro. Confesso que ele entrou para a minha lista dos esquecidos. Pois ontem, já de tardinha, eis que me surge o cachorrão preto e peludo. Ainda estava vivo. Ainda estava bravo. Ainda estava do outro lado da calçada. Foi só me ver que começou a latir, olhando-me de modo ameaçador.
Não deu outra: empadinha de frango.
Comeu e foi embora.
Cada um tem a sua diplomacia pra conseguir as coisas. Eu com a minha, mais calma e estratégica, consegui acabar um dia com a sua raiva. Ele com a dele, explosiva e com a cabeça quente, conseguiu ganhar empadinha de frango. Diplomacia esquentada pra ganhar lanche. O jeito é ter paciência, coitado. É cachorro de rua, nem nome deve ter.
Ou melhor... acabou de ganhar um: Cachorro Quente!