A gente pára e leva um susto ou a gente leva um susto e pára?
Pode parecer óbvia a resposta e tola a pergunta. Porém, o óbvio se veste de tolo para que a pergunta engane a resposta.
Era uma tardinha de sábado. Daquelas tardinhas melancólicas, chuvinha e frio, sem casamento na igreja e ameaça de não ter avenida à noite. Descia eu por uma das ladeiras de Resende Costa, sob o meu surrado guarda-chuva. Ia alegre, desafiando a tristeza cinza do céu. Descia, enquanto meu coração subia na escalada incansável de sua procura sem encontro. No fim da ladeira, havia um outro coração que um dia aceitou o meu... e o meu coração passou a acreditar que pulsar era algo a mais que bombear o sangue.
Eis que divisei ao longe um vira-latas andando em sua modorra de sábado sem osso. Vinha em minha direção, um pouco rápido por causa da garoa, as orelhas balançando com seu andar. Porte médio, a boca aberta e a língua mostrando que ele já caminhava havia tempo.
Um moleque, que um dia foi menino, me cutucou de dentro para fora e voltei a ser criança. Fechei o guarda-chuva e continuei o meu trajeto, sem mudar o ritmo. Iria passar um susto no cachorro. Abrir o guarda-chuva bem na sua cara para ver a reação do quadrúpede amigo do homem bípede.
O animal veio se aproximando... engatilhei o negócio... o bicho cada vez mais perto... chegando... chegando... Vapt! De repente, aquela roda preta bem na frente de seu focinho. Desceu numa disparada louca, deixando para trás minha gargalhada discreta.
Cheguei à casa onde o outro coração morava. Eu esperava na sala quando a luz foi embora. Escuridão total frente aos meus olhos. Não demorou muito e as lâmpadas estavam acesas novamente. Foi aí que minha espinha se congelou e meus pêlos ficaram de pé: à minha frente, um rosto ao mesmo tempo estranho e familiar me observava tão intimamente que quase gritei. Era um espelho. Caí no engano de seu reflexo por um átimo, mas foi o suficiente para sofrer um susto doído.
Parei e me vi a mim mesmo... isso assustou mais que a escuridão, pois fui obrigado a me ver de um modo invertido e sem os subterfúgios da terceira dimensão. O susto foi tão grave que não consegui o que ameacei: gritar. No entanto, gritar o quê? Gritar por quem? Talvez eu tenha gritado por mim mesmo, e gritei para dentro. Silêncio estropiado, com jeito de morte fracassada.
Naquela noite, passeei de mãos dadas e poucas frases. Meu olhar permaneceu no distante e minhas palavras vagavam pelo acaso das idéias. Assustei-me comigo mesmo. Lembrei-me do cachorro: ele se assustou e parou por uns segundos antes de correr. Comigo foi ao contrário: parei e me assustei. Parei em mim mesmo e me deu vontade de correr para as respostas que sempre procurei. Mas meu guarda-chuva se abre na hora de eu entender o que está além das nuvens.
Preciso tomar chuva, molhar-me mais com os pingos da ousadia. Preciso andar sem meu guarda-chuva, que só apara possíveis respostas a tantas angústias que me perseguem. Chega de correr e de ficar arrepiado frente ao ensaio de absurdo que todo susto traz em si. Chega de correr sem sentido e gritar sem voz.
Ontem mesmo eu vi um cachorro vindo em minha direção. Lembrei-me da história, mas me contive. Parei, à espera do canino inocente a fim de lhe afagar ou mesmo brincar com ele estalando meus dedos. Pois o danado estranhou minha atitude: um estranho olhando em sua direção e esperando por ele. O cachorro me olhou, parou e deu meia-volta, correndo assustado.
Que fazer? Uns aprendem com o susto... outros preferem ver guarda-chuvas onde não há chuva.
O susto
19 de Maio de 2008, por José Antônio