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Sedução

16 de Fevereiro de 2017, por José Antônio

Havia tempos que eu desejava uma aproximação. Mesmo nessa correria louca de cidade grande, sempre a percebi. No meio de buzinas, asfalto, prédios e neon... ela sempre lá. No mesmo lugar: bonita e austera.

A curiosidade em conhecê-la me atiçava, mas seu porte imponente me intimidava. Além disso, eu precisava de um motivo plausível para chegar até ela.

Até que um dia eu ganhei coragem.

– Pois não, senhor!

Um sujeito elegantemente vestido com um terno preto me recebeu na mais requintada formalidade.

– Olhe, amigo – retruquei – eu apenas queria conhecer a casa de velório. Dizem que é a mais chique do país. Todos os dias passo aqui em frente e hoje eu decidi ver como é.

O sujeito esboçou um sorriso acolhedor, porém discreto. E começou a fazer as honrarias da casa fúnebre. Enquanto adentrávamos o recinto, eu disse que tinha morado um tempo ali no bairro, que aquele local era um campinho, que eu estava impressionado com o luxo da casa...

– Aqui é a sala de convivência!

Era um cômodo confortável, com sofás grandes, mesinhas de centro, bebidas, cafezinho, quitutes, música ambiente, TV por assinatura e internet liberada com senha e tudo. Velório é chato e cansativo. Porém, o conforto da sala colocava a chatice na sola.

Soube de gente que foi pro velório e parou antes na tal da sala. Conversou, comeu, bebeu, viu TV, arrumou namoro pela internet e foi embora sem nem mesmo saber se o morto estava deitado de costas ou de lado.

O cara do terno preto ainda me mostrou os banheiros, a cozinha, fraldário e uma outra sala lá no fundo, com uma mesa de sinuca. Um luxo só.

– Nossa missão é que a separação do ente querido não seja tão desgastante.

Nem quis perguntar o preço daquilo. Não quero que minha partida seja desgastante nem gastante.

Por fim, ele me mostrou uma outra sala. Era central, mais espaçosa, arejada, com banquetas estofadas, ar condicionado e flores. Era a sala do velório. Até esqueci que ali tinha que ter sala pra isso! Ele falou sussurrando:

– Há um corpo aí para o velório. Morte por acidente. Os familiares estão chegando.

Entrei na sala e me aproximei daquele defunto granfino e solitário. Era uma mulher.

Coisas estranhas sempre me perseguem. Ao olhar aquele corpo, um frio me bambeou as articulações: eu conhecia aquela mulher. Tinha sido minha namorada num passado já distante, naquele bairro mesmo. Conferi o nome. Era ela. Reencontro na tangente de dois planos intransponíveis.

A casa com as janelas e portas abertas, lar das coisas findas... a mulher com os olhos fechados, aconchego morto de lembranças infindas. Acho que a sedução é o drama sofrido entre o nunca e o ainda.

Ontem eu passei em frente à casa. Austera, bonita e imponente. Desviei os olhos. Certas seduções são muito malucas. Malucas mesmo.

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