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Tá devendo?

20 de Janeiro de 2021, por José Antônio

Outro dia fui comprar um presente para a minha pequena prima. Sempre me enrolo com as compras de presentes. Já dei calça de magro pra gente gorda, camisa de gente velha pra gente jovem, sabonete pra quem não precisava, livro pra quem não gosta de ler... Sou um Papai Noel ao contrário: vivo enchendo o saco dos outros.

A mocinha chegou sorridente atrás do balcão e me lançou um “pois não” enfeitado por um sorriso burocrático. Expus os motivos pelos quais me encontrava em frente a ela naquela loja.

– Menininha, né? – perguntou, com jeito de mãe embutida, que um dia vai aparecer.

– É, é uma menininha sim. – respondi, com jeito de pai paciente, que um dia em mim apareceu.

A garota sumiu para depois aparecer carregando uma porção de caixas coloridas, de diversas formas. Explica dali, mostra daqui, abre uma caixa, fecha outra... até que se instalou um silêncio fatal: qual levar? Fiquei olhando os artigos como se olha para peças de xadrez. Ela tentou opinar, mas em vão. Continuei como estátua de burro empacado.

Finalmente, dei por encerrados meus raciocínios demorados e decidi-me.

– É pra anotar? O senhor tem ficha aqui?

– É, é pra anotar sim. Tenho ficha aqui.

Lá no caixa, a mocinha começou a procurar minha ficha que, costumeiramente, desaparece nas lojas, sempre a colocam no lugar errado. Como não encontrava, a jovem olhou para mim e perguntou:

– Tá devendo?

Todos por ali olharam para mim, esperando uma resposta, querendo saber se eu era um devedor. Sim, eu era um devedor, o tipo mais terrível de dívida: a dívida perante os olhares alheios. Eu devia uma resposta a todos.

Fiquei uns instantes parado e olhando para o ar. Dever...  Tá devendo? Pergunta cruel, pois nos coloca em situação de obrigatoriedade, de erro. É duro admitir que está devendo. Estou devendo uma visita... Estou devendo desculpas porque não fui ao seu jantar... Estou devendo um favor ao fulano... E toca a gente a fugir dos cobradores sociais, que aparecem nos lugares mais inesperados. E a gente com as mesmas satisfações: Ainda não tive tempo, mas apareço lá... Logo na hora de eu sair para a sua casa chegou um amigo com a família toda... Um dia eu ainda lhe pago o seu favor, amigo...

Isso tudo vai sedimentando ainda mais o nosso complexo de dívida. Já nascemos devendo: quando criança, aprendi que todos nascem com o pecado original. Nem bem entramos no mundo e já nos cobram algo que já deveríamos ter quitado!!! E a vida inteira a gente passa nessa autocobrança das dívidas que nos assombram.

Saí da loja com o presente dentro da sacolinha. Acho que minha priminha vai ficar uma boneca com a roupinha que comprei para ela. Mas ainda não entreguei, não tive tempo de ir lá, é uma correria danada...

Estou devendo esse presente a ela.

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