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O despropósito

14 de Novembro de 2017, por Evaldo Balbino

A casa já estava tonta. A meninada corria no seu entorno. Afinal, criança brincando é uma loucura, um rodopio. Ciranda de entontecer.

Tudo começara na varanda, rente à porta da cozinha. Combinaram que fosse uma corrida. Não um pique de corre-corre nem de esconder. Disso todos já estavam cansados. Guris cansam à toa. E ninguém poderia fazer outro trajeto que não o combinado. Deveriam partir da varanda, correr em linha reta em direção à rua (o portão ficaria aberto), guinar à direita, passar em frente da casa diante das duas janelas namoradeiras, virar à direita de novo, entrar pela porta da sala (o portão aí também ficaria aberto), correr até o final lá perto da ribanceira, virar novamente à direita, passar pelos fundos da cozinha até chegar ao lado da caixa d’água já de frente para o galinheiro e a privada, guinar outra vez para a direita até a varanda da cozinha. E aí, perto da porta que dava para os quitutes que a mãe sempre deixava em cima do armário, todos deveriam continuar a corrida. E nada de algum sem-vergonha querer fugir do trajeto para furtar e comer algo lá de cima do móvel. A hora do lanche ainda não era chegada. Tudo a seu tempo. E agora seria a hora de correr. Só parariam os que fossem ficando cansados e não aguentassem mais. Ganharia aquele que, por último, permanecesse correndo ao redor da casa.

E assim todos giravam agora. Eram relâmpagos. Na verdade, não faziam um círculo perfeito. A casa era um retângulo, e além disso desobedeciam às quinas e faziam uma curva desengonçada, célere. Eram faíscas riscando num giro a vivenda. Fagulhas perigosas, fazendo estrondo como trovões irrequietos. E que perigos pelo caminho! Que não houvesse nenhum obstáculo! Seria morte na certa. O pior é que os relâmpagos também poderiam morrer. Mas eles não se preocupavam com isso. Que os adultos se cuidassem, que saíssem do caminho necessário à brincadeira!

Numa das voltas atordoadas, Lino quase se chocou com um grupo de visitantes que entrava pelo portão do terreiro da cozinha. Nas cidades pequenas as visitas são assim, sem cerimônias. Todos entram mesmo é pela porta da cozinha. E mesmo o portão estando fechado, nenhum problema. As mãos visitantes o abrem naturalmente, e passam com intimidade como se ele não existisse.

No quase choque, desviou-se ágil, e a mãe lhe gritou para que voltasse e pedisse bênção aos tios e cumprimentasse os primos. O menino respondeu “um já vou” animado e com pressa. “Já vou, mas deixa eu terminar essa volta!”.

E continuou correndo lá para a rua no intuito de, olimpicamente, fechar aquela rodada em tempo recorde, parar diante dos parentes, pedir bênçãos protocolares, fazer cumprimentos formais e voltar (com toda a educação do mundo) para a corrida que não podia perder.

Ele nunca tinha visto aqueles parentes. Não se lembrava da cara deles. Deveriam certamente ser de outra cidade. Dali é que não eram, pois em cidade pequena, pequenina mesmo, todo mundo conhece a cara de todo mundo. Ainda mais ele, Lino, um garoto que andava que nem cachorro sem dono no dizer dos pais e dos irmãos.

Apertou o passo; chegou até a varanda da cozinha; adentrou o recinto com educação, mas respirando forte e todo suado; esbaforido, pediu bênção e fez saudações. E os seus olhos, já olhando para a varanda lá fora na iminência de correrem mundo, viram de lado uma prima um pouco menor do que ele. Talvez quase do mesmo tamanho. Ela estava sentada no banco. Ele não pensou duas vezes. Numa educação agora espontânea e muito amiga, foi logo puxando a prima por um dos braços, convidando-a para entrar na brincadeira pelo terreiro.

Parou atônito, de repente. Parou estarrecido com o grito que a prima acabara de lhe dirigir. Um grito tão alto, que seus ouvidos doeram. Alto e grave, numa voz de adulto.

– Me larga, idiota, que não sou criança, não!!!

No susto, ele viu que falava com mulher adulta, já bem adulta. Mas só que pequena, bem pequena. Ele falava, e ela gritava.

Largou-lhe o braço, as pessoas todas se olhando entre achar graça e meio desconcertadas. E ele com vergonha, muita vergonha e chateação.

Saiu da cozinha e voltou para brincar. Isso para não enfiar a cara num buraco, de tanto acanhamento. E teve raiva da prima. O problema não era ela ser pequena. Isso não. O problema era ser bruta.

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