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Tia Denita

12 de Julho de 2020, por Evaldo Balbino

Uma das filhas da minha bisavó Olívia, tia Denita falava de modo trêmulo, afagando o queixo com o polegar e o indicador da mão direita. Poucas vezes a vi em Resende Costa. Morava num sítio no povoado do Cajuru (pertencente ao município), aonde fui somente uma vez.

Lembro bem o dia. Meu pai, pedreiro desde sempre (construtor de vidas porque erguendo abrigos para os nossos corpos tão carentes de proteção), estava no povoado fazendo a reforma da Capela de Santo Antônio do Cajuru. Quando o vi nas alturas do templo, lá estava ele terminando de erguer a torre. E ela parecendo, no seu topo, quase uma pirâmide. Torre quadriculada apoiada em quatro colunas e se mostrando como um prediozinho de três andares: a entrada para a igreja, uma janela um pouco mais acima e outra janela, mais acima ainda, ostentando o sino badalador. Nas laterais da torre, ainda na fachada da ermida, outras duas janelas. Nos flancos do santuário, mais portas e janelas deixando o edifício respirar. E todas elas quadradas na base, com dois ângulos retos dos lados, e semicirculares na parte superior, dando ao mesmo tempo a ideia da rigidez na entrada para o céu e da delicadeza nas curvas, uma abertura a permitir que todos nós, sem nenhuma exceção mesmo, possamos entrar na Terra Prometida.

Meu pai e um servente cuidavam da reforma da nave, e minha mãe, indo ver o marido para amainar saudades, aproveitou para visitar parentes no povoado e comprar tecidos na dona Hercília. Fomos, pela estrada de terra, na carroceria de um caminhão que transportava latas de leite. E na casa da vendedora Hercília eram tramas tantas, fatos para diferentes gostos e bolsos, desde o mata-borrão e a chita, até passar por tecidos caros de algodão e fina seda. Ao lado esquerdo da igrejinha, para quem a olhasse de frente, plantavam-se quatro casas humildes e silenciosas, nas quais moravam, de modo enfileirado, o sr. Gilmar, o seu Luís Antero, o seu Ibrahim e o Antônio do Adilino. A casa da Hercília ficava antes, mais para cá da igreja, perto do campinho de futebol.

Entre todos os parentes visitados, a tia Denita.

Como eu já disse, poucas vezes pude vê-la. A primeira foi num batismo da nossa igreja no Ribeirão de Santo Antônio: todos os fiéis reunidos ao lado do tanque de imersão, ela com o véu na cabeça, hinário nas mãos em posição de louvor, um canto fino e alto querendo chegar ao céu. Umas duas ou três vezes me encontrei com ela em Resende Costa mesmo, também congregando nós dois.

Agora, no Cajuru, eu revia suas mãos. Trêmulas ainda, pois desde sempre as vi idosas, avançando pelo tempo, lutando contra a morte. Os dedos meio que encurvados, já pejados do mergulho em água fria para lavação de roupa, já gastos pelo roçar da faca no cortar carnes e legumes, já enrugados pelo calor do borralho, já retalhados em plantios e colheitas do antigamente. O mesmo hábito já visto: a mão direita sobre o queixo, no qual se fechavam o polegar e o indicador enquanto ela falava. E o queixo com umas poucas penugens, pelos ralos e parcos que ali cresciam e com relação aos quais ela não manifestava nenhuma vaidade. Não os arrancava, antes os acariciava com o polegar e o dedo indicador.

E sua fala, também trêmula, era rápida, meio abafada, num descompasso que os meus ouvidos de criança lutavam para entender. E contava casos, e ouvia atenta, e falava tanto sobre tudo e todos. E como ria do que escutava! Gargalhava para a vida. Porque a vida precisa de risos e sorrisos. Um siso duro e carrancudo não faz bem a nenhum ser.

Tia Denita era baixa. Andava meio corcunda, a coluna envergada pelos anos. Os pés quase plantados no chão, com sapatos semifechados de fivela por cima ou então com sandálias de couro e meias para guardarem do frio o corpo que tanto frio enfrentou na sua existência.

E me lembro dela falando de geadas, de orvalhos ensopando gramas, do tilintar de vidas que madrugavam para a labuta da roça e da casa. E dos homens tantos, mais filhos homens do que filhas mulheres nas casas esparsas, roupa a ser lavada, sabão de sebo a ser fabricado nos terreiros das cozinhas, e os capados em preparo, a varrição do quintal que não tinha fim, e a dura semeadura sob um Sol pura lâmina cortante, a capina nos tempos necessários, a ceifa de fazer arderem braços e olhos e mãos. O plantar e colher incessantes da vida.

E nesse viver sem fim uma vida dura e boa, ela também foi colhida um dia. A foice da vida sempre ceifando. E agora, na lavra da palavra, revivo-a no que semeio. Escrever é ressuscitar o que o tempo mata.

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