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Tia Jusceia e tia Lúcia

13 de Marco de 2018, por Evaldo Balbino

Na sala de aula, em 1984, éramos muitas crianças. E com uma diversidade em termos de alfabetização, que só vendo! Eu mesmo ainda estava bastante cru, pois não tinha feito o jardim de infância, a pré-escola. Relutara em entrar na escola e deu no que deu. Naquela época a gente aprendia a ler era na primeira série mesmo, o que seria hoje o segundo ano. Mas a meninada, a que passara pelos preparatórios, já tinha uma boa coordenação motora para pegar o lápis, já fazia movimentos mais ou menos precisos com os de cor e coloria os desenhos e a vida, já conhecia as letras do alfabeto. Alguns dos alunos, este era o meu caso, até escreviam os seus nomes em letras de fôrma e sabiam também alguns algarismos.

Foi aí que as duas professoras da turma tiveram que fazer malabarismos. Primeiro a tia Jusceia, que depois de uns dois meses mais ou menos teve que sair não sei por que motivo. Depois a tia Lúcia, que completou o ano letivo conosco. Além delas, outras entravam em sala de vez em quando. A dona Aleluia ministrava Ensino Religioso. A dona Dilma, Educação Física. A dona Ângela trabalhava questões de higiene e de saúde, para além do que já víamos nas aulas regulares. Com a Jusceia e a Lúcia, eram as matemáticas primeiras, os preâmbulos da língua portuguesa escrita, os Estudos Sociais e as Ciências.

No início eram ziguezagues, serrinhas pontilhadas que eu subia e descia com meus dedos de menino desengonçado. E com que afinco eu seguia os pontinhos, tentando não fazer traçado torto, buscando uma perfeição que não existe, desejando perfeita a vida. E as ondas, o que dizer das ondas!? Também pontilhadas, mas não com ângulos agressivos como as serrinhas. As ondas eram meigas, doces, lânguidas. E minha mão direita ia também ficando langorosa, apaixonada pelas vagas que o lápis de escrever ia produzindo diante dos meus olhos.

As primeiras letras, um assombro, um amor de aparição. E o concerto entre elas, um poder descomunal. A sensação de ligar mundos, fazer pontes, contar e escrever histórias. Os pequenos textos da cartilha e depois historinhas melhor tecidas, de sustância. De entrada, Alaíde Lisboa e Ruth Rocha. O primeiro livro, O bonequinho doce, me fez doce a vida, cheia de guloseimas que ela é. Em seguida A bonequinha preta e Marcelo, Marmelo, Martelo. Foi um pouco depois, com Henriqueta Lisboa, que li e conheci o passarinho no fio ouvindo um segredo e contando-o ao sino na torre da igreja. Fiquei deslumbrado com o sino candongueiro dizendo tudo para a cidadezinha inteira.

E os desenhos?! Colori-los era um modo de amá-los. Além do meu amor desde cedo pelos vocábulos, as imagens sozinhas conquistaram também espaço diante dos meus olhos. E eu as recebia mimeografadas em folhas, numa cor roxa bonita e com cheiro leve de álcool. Aprendi bem depois que aquelas maquininhas, usadas na escola para reproduzir cópias de atividades, eram na verdade reprodutores a álcool e não mimeógrafos. Mas isso não importa: o nome que se usa é o que fica. Todos os desenhos eram tirados a mão pelas professoras numa faina contínua. De posse deles, eu os acariciava com um jeito menino e estorvado. Mas cuidado eu tinha. E como! Traçava de preto as bordas para frisar a cor meio fraca do estêncil. E depois ia delineando mais nitidamente os traços esmaecidos. Olhos iam se configurando, o nariz se fazendo, a boca se abrindo num sorriso vero. Os braços e as mãos ganhavam vida, agenciavam gestos. Até os seres inanimados ganhavam o fôlego da existência. E os meus gestos se revivificavam, buscando ali engendrar vidas em cores várias. Naqueles momentos, criador e criaturas eram uma vida só.

De uma coisa não posso me esquecer e que reforça o lado persistente das professoras tia Jusceia e tia Lúcia. Éramos crianças de famílias com pouquíssimas posses ou quase nenhuma em sua maioria. E quase todos não tínhamos cola, a de textura refinada e industrializada no vidro branco, ilustrado e bonito. Então as duas professoras misturavam água e polvilho e faziam grude. E a massa grossa ficava lá na frente da sala, perto da mesa dos professores, bem em cima do beiral da janela. Quando se distribuía alguma folha para colarmos, tesouras trabalhavam, pedaços de papel iam para a lixeira, alunos e alunas iam e vinham como formigas céleres para pegar o bastãozinho dentro da cola e pincelar o verso da folha que seria colada no caderno.

Todas essas coisas aconteciam naquele ano letivo de 1984. E todas elas se me pegaram, do mesmo modo como o heroico magistério das professoras Jusceia e Lúcia foi a primeira impressão afetuosa do que em mim é amor pelas letras, pela educação, pela cultura.

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