A passagem de um herói


Homenagem Especial

João Bosco Pinto Lara*0

fotoSr. Geraldo Melo (1928 - 2021)

Neste mundo da pós-modernidade, a marca é a relativização de tudo que esteja ao nosso alcance, principalmente de nossas cabeças pensantes. Tudo pode ser relativizado, inclusive o sexo das pessoas, o conceito de família etc., dizem os pós-modernistas e os adeptos ferrenhos das novas culturas. Basta querer, invocando-se sempre novos padrões culturais e, muitas vezes, o simples desejo dos viventes. A linguagem, então, nem se fala! Vão surgindo a cada dia palavras e palavreados novos que soam até mal e inapropriados aos nossos ouvidos. Bem entendido, de quem não se dispõe a acompanhar os modismos e adotar aquilo que se convencionou denominar de “politicamente correto”, que, convenhamos, além de ser a coisa mais chata da atualidade, só faz promover a divisão entre pessoas na sociedade, entre amigos, grupos familiares e outros. Cito um exemplo corriqueiro: quando uma mulher, merecida e necessariamente assume a presidência de uma instituição pública e privada, ela não pode ser tratada de “presidente”, como sempre ocorreu aqui e em qualquer quadrante do planeta, mas, sim, de “presidenta”. Horrível, não (?!). Mas quem não gostar ou não aderir vai logo sendo carimbado de machismo ou de misoginia. Nós estamos tornando nosso planeta cada vez mais chato e inabitável!

Ocorre que o relativismo não chega nunca àquilo que, do meu modesto ponto de vista, é muito mais importante para nós e para a nossa história. Refiro-me aqui aos significados e conceitos de dois vocábulos e expressões da nossa cultura: o de herói e o de personalidade ilustre. O primeiro, herói, para todo mundo ainda tipifica aquelas pessoas que praticaram ou cometeram atos de bravura na esfera pública, atos de força física ou de repercussão intelectual, científica e histórica. Já o segundo, o de personalidade ilustre, embora quase coincidente com o primeiro, ostenta novas características: via de regra, é destinado a pessoas com alta escolaridade, os chamados doutores ou professores, e os próceres políticos dos mais variados matizes. Daí que muitos dos nossos verdadeiros heróis com H maiúsculo e outras tantas personalidades ilustres, que realmente importam para a vida de muitos ou de sua comunidade, vão ficando soterrados no passado ou esquecidos na história que realmente vale para muitos de nós.

Pois é! Dias atrás, e escrevo estas linhas em 28 de março no ano pandêmico de 2021, mais exatamente no passado dia 17, nós, os resende-costenses, particularmente seus familiares e nós seus amigos, perdemos um desses Grandes Heróis, uma personalidade pública das mais relevantes da nossa comunidade. E, por que não (?), de relevância para pessoas de muitas comunidades e estados distantes deste enorme país, já que os frutos da sua inteligência e do seu árduo trabalho percorreram léguas e léguas ou centenas e milhares de quilômetros de distância. E por solicitação do jornalista André, editor do Jornal das Lajes, fui agraciado com a oportunidade e a honra de contar um tiquinho da história deste Grande Homem.

Sim, perdemos aqui nessa terra de pobres mortais o Senhor Geraldo Balbino da Silva, mais conhecido, admirado e amado por todos nós como SÔ GERALDO MELO. Com quase 93 anos de vida bem vividos, é verdade, mas ainda com disposição e lucidez de fazer inveja a muitos jovens. Tanto que dias antes se dirigira à sua propriedade rural, na Mata ou no Marimbondo, para olhar seus bovinos e lhes dar sal.

Nós todos que lemos e admiramos a celebrada obra do grande João Guimarães Rosa, certamente uma das mais relevantes e importantes de nossa literatura ou da literatura universal, porque traduzida para quase todos os idiomas do mundo, ficamos matutando diante da partida do Sô Geraldo Melo. Se o grande escritor tivesse avançado um pouquinho mais nas suas andanças pelos sertões de Minas no lombo do seu alazão baio e topasse com esta figura ímpar do Sô Geraldo, certamente o teria elegido como personagem central de uma de suas obras literárias. Não de um dos maravilhosos e robustos contos de dezenas de páginas, de “Sagarana” ou de “Primeiras Estórias”, mas de um romance inteiro equiparável ao “Grande Sertão, Veredas”. Ora, sabemos pela leitura das obras de Guimarães Rosa, que ele esteve, em viagens acompanhando boiadeiros e boiadas, ali bem pertinho, em Itaguara, pouquinho além de Passa Tempo e de Piracema, a um tiro de cartucheira do Ribeirão de Santo Antônio, onde naquela quadra se encontrava o nosso herói, a personagem ilustre de nossa história. Precisaria só avançar um pouquinho mais, passando por Jacarandira e pelo Cajuru, ou poderia mesmo vir por Capela Nova, hoje Desterro de Entre Rios... e pronto: lá estaria o Sô Geraldo sentado, ou de, pé em sua tenda de ferreiro ou na sua oficina de carpinteiro, esculpindo uma ferramenta a partir do ferro bruto... ou construindo um carro de boi... ou terminando a montagem de um moinho de pedra tocado a água; ou, pasmem (!), cortando o cabelo de alguém. E muito mais: poderia estar perambulando pelo povoado para aplicar uma injeção num membro da comunidade que estivesse doente, ou mesmo trabalhando num caixão mortuário no fundo do quintal de alguém que tivesse falecido naquele dia. A maioria dessas habilidades ou atividades ele as exercia de modo gratuito, apenas com a finalidade de praticar o bem e de ajudar o próximo.

Este era o Sô Geraldo Melo, o nosso Herói Sem Medalha. Verdadeiro personagem e perfeito herói para uma obra de Guimarães Rosa, perdido numa das grotas do aprazível Povoado do Ribeirão de Santo Antônio, onde nasceu no longínquo dia 21 de junho do ano da Graça de 1928.

Conto tudo isso não somente com imensa tristeza por ter perdido um velho amigo e um amigo mais velho do que eu, mas ainda com uma ponta de orgulho: também tenho origens no Ribeirão de Santo Antônio, local em que nasceu minha saudosa Mãe, a Trindade do Góes, onde viveu até os 7 anos de idade, lá deixando minha avó, viúva, a cuidar dos outros três filhos pequenos, ainda crianças. É com orgulho redobrado quando anuncio que o Sô Geraldo fazia questão de lembrar sempre que foi, desde criança, aprendiz do meu bisavô materno, o Senhor João Gonçalves, que não tive a ventura de conhecer, mas meus irmãos mais velhos, sim. Com o meu velho bisavô aprendeu seus ofícios, começando como ajudante desde a sua infância. Assim ele sempre fazia questão absoluta de relatar e de frisar nas longas conversas que travamos. E daí vinham histórias e mais histórias daquele passado nem tão longínquo, mas que ficou nas dobras da primeira metade do século passado.

Talvez por isso eu e meus irmãos tenhamos desenvolvido uma relação tão amiga e tão próxima com o Sô Geraldo. Vim a conhecê-lo de perto, na verdade, quando se mudou com sua numerosa e maravilhosa família, constituída de esposa e 10 filhos, para a cidade de Resende Costa, há cerca de 48 anos. Certamente tangido pela necessidade de dar estudo e melhores condições de vida para seus filhos. Também para cá se transferiu, com sua inteligência inigualável e sua habilidade, com todas as suas ferramentas e apetrechos, a fim de construir tudo que fosse necessário para o homem e para a vida no campo, a fim de dar continuidade ao que sempre fez. Adquiriu um belo sítio nas proximidades da cidade, mais exatamente na fonte da Ilha, que pertenceu ao Sr. Pascoal Maia e família. Ali abrigou sua família e os seus animais e estabeleceu suas oficinas. Daí em diante, os resende-costenses passaram a afluir diariamente à sua propriedade, todos aqueles que demandavam o seu grande portfólio de serviços, mas principalmente o homem e a mulher do campo em busca dos seus meios de trabalho e de sobrevivência, o que ele com maestria sabia inventar e fabricar a partir da madeira e da ferragem.

Trouxe na sua bagagem tudo o que tinha de significativo para a sua vida e para a sobrevivência de sua família, e também para dar continuidade aos seus diversos ofícios. Mas nunca se desligou do povo e das coisas do Ribeirão de Santo Antônio. Para sua morada afluíam todos aqueles, parentes e amigos, que vinham da sua antiga comunidade. Jamais perdeu os laços com tudo que deixara para trás e por isso, mais importante, trouxe consigo a sua inseparável viola de 10 cordas, da qual tirava maravilhas nas horas e nos dias de folga.

De família de muitos músicos, os filhos do Senhor João Melo, a quem tive a honra de conhecer, de cantores e foliões de mãos cheias, o Sô Geraldo era um deles. Até nos seus últimos tempos de vida, fazia questão de empunhar a sua viola de onde retirava maravilhosas modinhas e melodias, que certamente representavam o contentamento e o lamento do sertanejo, do homem da roça, que dia a dia vê seus valores humanos e culturais ficando ao longo da sua sofrida história. Nos últimos anos, fazia dupla com o seu filho Irimar, também grande violeiro, ou com seu genro Hamilton, sanfoneiro dos bons.

A sua fiel esposa e companheira de longa jornada, Sra. Maria Antônia de Jesus, lhe sobreviveu e ainda mantém aceso o fogo do fogão a lenha na cozinha que eu e muitos outros não deixaremos de frequentar. Ainda no finzinho do dia 27 de março último, lá estive tomando seu cafezinho gostoso com seus biscoitos caseiros e, acreditem, lá estava ela espremendo sua última safra de queijo mineiro que tão bem sabe fazer. Do seu longo e profícuo casamento com Dona Maria, formou-se uma família linda, unida e solidária entre si, donde nasceram e sobreviveram os seguintes filhos, em ordem decrescente: Maria Florinda, Maria Ilda, esta a sua companheira permanente dos últimos anos, Ivanil, já falecido há 17 anos, Ilma Aparecida, Ivanei (Neizinho), Ivanilda Antônia, Irlei (Preto) Irléia Antônia, Iraci, falecido há apenas 3 meses, e Irimar. 

Aspecto importante a ser realçado, além da perfeita união da família, é que seus filhos homens, todos eles, herdaram parte dos seus ofícios e deram seguimento à sua grande obra. A Ilda, sua fiel companheira dos últimos anos, deu-lhe mais um neto de nome Valdovino, nome herdado do avô paterno, mas que todos aqui na cidade conhecemos carinhosamente como Preguinho. Este, sim, um autêntico herdeiro das diversas habilidades do Sô Geraldo, que, junto com seu primo Jonas, dão prosseguimento à extensa prestação de serviços fundamental para o homem do campo. Hoje, naturalmente, com a ajuda de muitas máquinas e ferramentas que antes era ele próprio que construía.

Contar a longa saga do Sô Geraldo Melo demandaria de fato um volumoso livro, um romance épico de um verdadeiro herói, o que este artigo para o JL não comportaria. Todavia, devo ainda ressaltar uma qualidade marcante dele, que talvez perpasse todas as outras que já enumerei acima: ele não foi tão somente um homem inteligente, habilidoso, trabalhador, benfeitor, violeiro e muito mais! Ele era sobretudo um homem bom, educado, de fala mansa, quase sussurrada, que a todos atendia, dos mais pobres aos mais bem aquinhoados, sempre com a mesma boa vontade e com o mesmo sorriso no rosto, debaixo do seu inseparável chapéu.

A cidade cresceu muito, mais ainda pelos lados do seu sítio, que, num piscar de olhos, estava aprisionado dentro da área urbana. Grande parte de suas terras foram transformadas em loteamento e passaram a integrar uma região muito bonita e densamente povoada da urbe, o Bairro Bela Vista. Mas a casa original dele e dos seus familiares permanece lá firme, com sua cozinha acolhedora, com aquela que foi a sua grande oficina ao lado, e hoje com um enorme terreno repleto de máquinas agrícolas para consertos e reparos pelo Preguinho com o concurso do Jonas. Ainda tem o curral com as vacas de leite, a engorda de porcos, as galinhas e a horta de verdura, onde muito se produz para a família. Lá se reúnem os familiares e por lá passam diariamente dezenas de pessoas em busca dos serviços, que podem não ser exatamente os mesmos que o Sô Geraldo prestava à comunidade.

Encerro com uma grande névoa de saudade que me embaça os olhos e a mente, saudade de um Homem correto, inteligente, digno e trabalhador, eternamente envolvido em suas mais marcantes características: a humildade e a bondade. Esse foi e é um verdadeiro Herói, um grande homem público de Resende Costa. Dele, além das ternas e boas lembranças, e também da amizade, guardo uma relíquia na minha propriedade rural: um moinho de pedra que ele construiu e assentou para mim com todo carinho – uma preciosidade que me enche de orgulho, de onde retiro o meu fubá para o angu, para a broa, para os biscoitos, para os passarinhos etc. Eu e meus vizinhos, a quem sempre empresto com o maior prazer.

Até um dia, Sô Geraldo!

 

*Desembargador aposentado, advogado e produtor rural em Resende Costa.

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