Ano de 2020 ainda pode ser “um grande momento do ensino na escola”, diz educador


José Venâncio de Resende


João Bosco de Castro Teixeira é professor aposentado da UFSJ e membro da ALSJDR (Foto arquivo pessoal)

“A educação do país não vai ficar mais precária se se vier a perder um ano. Não vai, porque estamos perdendo anos seguidos com o desprezo que emprestamos à educação básica.” É o que pensa João Bosco de Castro Teixeira, professor aposentado da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e membro da Academia de Letras de São João del-Rei.

Nesta entrevista ao JL, o educador fala do aumento da desigualdade com a pandemia nos aspectos econômico, social, cultural, da saúde e da educação, bem como do comprometimento do ano letivo de 2020. “Se o Governo e as escolas, nos vários níveis, dedicassem o resto de 2020 para preparar 2021, cuidando da metodologia de ensino, do aparato tecnológico e de logística, da capacitação docente e da gestão educacional, o ano de 2020 passaria como um grande momento do ensino na escola.”

Você acha que a pandemia expôs de maneira mais contundente aquilo que já sabíamos, ou seja, que existe uma desigualdade gritante? Sem dúvida. Evidenciou-se em todos os campos. No econômico, causou espécie o grande número de pessoas que precisaram do auxílio emergente, oferecido pelo Governo. No campo social, ele está intimamente ligado ao econômico, mas pense-se quão poucas foram as pessoas que puderam se dar ao luxo de se recolherem em casas de campo, sítios, pequenas propriedades mais interioranas, enquanto as classes de baixa ou de nenhuma renda precisam permanecer em espaços mínimos de suas residências, submetidas muito mais à transmissão do coronavírus. No aspecto cultural, os espetáculos ficaram reduzidos às ofertas das “lives”. No campo religioso, sabe-se bem que quem mais sofreu com o fechamento dos templos foram os pobres. Nos campos da saúde e da educação, a evidência da desigualdade se fez maior ainda e totalmente evidente.

Você acha que a pandemia acentuou de maneira irreversível essa desigualdade em seus vários aspectos (regionais, entre escolas particulares e públicas, entre as próprias escolas públicas e entre classes sociais)? Sim, a pandemia acentuou, sim. Espero, no entanto, que não de “maneira irreversível”. Acentuou a desigualdade em dois sentidos. Primeiro, pela oferta de qualidade diferenciada entre regiões e entre os setores público e privado; diferença que já existe no ensino presencial. Segundo, pela diferença acentuada até dentro de uma mesma região ou seguimento, com alunos que não tiveram as mesmas condições tecnológicas, ou de acompanhamento, para seguir os trabalhos ministrados a distância.

Como você analisa esses movimentos contraditórios na sociedade, como pressão das escolas particulares para retomarem as aulas presenciais; professores das escolas públicas que resistem a voltar, alegando insegurança; pais de alunos da rede pública que defendem que o ano letivo seja repetido; indefinição de governadores sobre o retorno das aulas presenciais etc.? Não posso garantir a objetividade de tais percepções. Escolas particulares requerem a retomada não sei se por motivos nobres, dado que a principal preocupação da maioria delas não está na educação, mas na transmissão de conhecimentos necessários aos alunos para que superem a variedade de exames a que o sistema atual os submeteu. Além disso, elas precisam manter o pagamento das mensalidades. Professores das escolas públicas resistem, com razão, dado que as escolas não estão preparadas para obedecer a um protocolo que ofereça a eles condições indispensáveis para prevenir uma Covid-19. Observe-se que parte notável dos professores constitui grupo de risco, por razão de idade e por razão de deficiente saúde física e psicológica. Mais, além dos professores as escolas públicas mantêm um pessoal de apoio à educação também em condições, às vezes, não satisfatórias à saúde. Pais de alunos de escola pública que gostariam que o ano letivo fosse considerado perdido. É uma questão interessante. A maioria dos alunos de escolas públicas é das classes sociais mais baixas. Os pais de tais alunos foram os que menos se sentiram ocupados no acompanhamento dos filhos com os estudos a distância, por razões já anteriormente consideradas. Por isso, eles não veem sentido considerar válida a tentativa de substituição das aulas presenciais por atividades das quais não participaram com os filhos. Governadores que anunciam a abertura das escolas e voltam atrás. Prefiro não dizer nada, pois a incerteza sobre a evolução da pandemia não deixa ninguém seguro sobre questão alguma relativa. Tomar decisão, em tal situação, não é nada confortável.

Em termos de educação escolar, você acha que 2020 é um ano perdido? Vamos distinguir os termos educação e ensino. Educação é um processo pelo qual se ajuda o infante (aquele que não fala) a dizer a própria palavra. É um processo de aquisição de valores, pela conquista da liberdade. Como tal, é competência da família, da escola e da sociedade. Nesse sentido, a pandemia exigiu muito das famílias. E, acredito, positivamente. A escola, esse lugar maravilhoso da convivência, da companheirada, da cumplicidade em tanta coisa, da educação, por excelência, e que ela faz bem, tudo foi perdido. E eu digo: irremediavelmente. Outros tempos virão. Mas esse tempo foi perdido. A escola deixou de oferecer o que de melhor ela faz: educação. Evidente que sem culpa alguma. A sociedade reduziu-se a proibir isso e aquilo. Do ponto de vista do ensino, já falamos da diversidade de situação no tocante à possibilidade de ensino/aprendizado a distância. Quem teve condição, teve. Quem não teve, não teve. E nesse sentido, a escola fez falta e fará. Muitos alunos só têm a escola quando se fala de Enem. Soa para mim como injustiça a oferta do Enem diante da situação que vivemos. É oferecer a mesma oportunidade para quem não teve as mesmas condições. É oficializar e aceitar, como estrutural, a desigualdade

Num país onde a educação já é precária, o que significa perder este ano, mesmo que haja algum retorno parcial às aulas presenciais? A educação do país não vai ficar mais precária se se vier a perder um ano. Não vai, porque estamos perdendo anos seguidos com o desprezo que emprestamos à educação básica. Nossa precariedade está, fundamentalmente, na educação básica. Não temos o atendimento devido à infância. Faltam-nos creches, muitas creches, com pessoal capacitado que ajude as crianças a crescerem “experimentando” a validade e a beleza da vida, que de todos pede empenho. No fundamental I e II, há uma enorme distorção do ponto de vista do ensino/aprendizado. É período de foco em dois aspectos: leitura e matemática. Leitura como crítica, dedução, indução, criatividade, interpretação, capacidade de escutar, de exprimir o próprio pensamento. Matemática como exercício contínuo, diuturno, de reflexão, de interpretação da realidade, iniciada com as quatro operações em suas muitíssimas aplicações por toda a vida. O excesso de conteúdo não deixa espaço para o essencial nesse período. Se se quisesse enriquecer o currículo nessa fase do ensino, era recheá-lo de arte e esporte. Tem-se um excesso de conteúdo, sem foco algum, sem escolha estratégica que alimente todo o processo. O menino pode até terminar o 5º ano sabendo ler. Mas é de uma leitura pobre. E a matemática não o levou a pensar, discutir, interpretar, imaginar, enfim, viver. Infelizmente, a perda de um ano não vai piorar a educação, aqui entendida, pobremente, como ensino/aprendizado.

Como sair desta armadilha provocada pela pandemia: de um lado, não há condições para ensino remoto; por outro lado, é impraticável o retorno às aulas presenciais nos atuais níveis de contágio no Brasil? Olhe, até hoje não tivemos, no Brasil, um governo, em nível federal ou estadual, que colocasse a educação como prioridade. Em nível municipal, alguma coisa aqui e acolá. Pois bem, se o Governo e as escolas, nos vários níveis, dedicassem o resto de 2020 para preparar 2021, cuidando da metodologia de ensino, do aparato tecnológico e de logística, da capacitação docente e da gestão educacional, o ano de 2020 passaria como um grande momento do ensino na escola. Não há quem acredite que seja possível um mal pago professor, às vezes também despreparado, ajudar vinte e cinco, trinta meninos e adolescentes dentro de uma sala de aula. Trata-se de alunos que estão vivendo noutro tempo, noutra cultura, motivados para mil coisas que pouco têm a ver com uma sala de aula onde o que mais conta, absurdamente, é o silêncio. Alunos, que no seu dia a dia, vivem de conversa, de interação, de trocas em tudo quanto é aspecto da vida, servindo-se dos celulares, da internet, nos mais variados ambientes, em grupos pequenos (onde a afetividade conta e muito) o tempo todo desafiados. Portanto, é necessária, a meu aviso, uma radical revolução no ensino que leve as escolas a adaptarem desde sua área física até os aspectos facilitadores do aprendizado. E, sem receio, aderirem, a partir do fundamental II, ao ensino a distância, concomitantemente com o ensino presencial. Na minha opinião, no Fundamental I não cabe o ensino a distância, por razões de ordem até psicológica.

Há várias propostas para o retorno à escola: adotar um sistema híbrido (parte das aulas à distância e parte presencial) para evitar as classes lotadas, promovendo assim um rodízio nas escolas com classes menores (embora todos os professores inclusive mais velhos tenham de comparecer); ampliar o tempo das aulas, reduzindo intervalos e a circulação dos alunos; ampliar o ano letivo de 2021 para oito meses, de forma a cumprir dois anos letivos (2020 e 2021) em apenas um. Você acha viável? De alguma coisa não tenho dúvida: a tecnologia de ensino precisa entrar para valer na metodologia da relação ensino/aprendizado. E vai nisso grande dificuldade por tudo quanto se sabe, tanto relativamente a professores quanto a alunos, e até mesmo com relação à escola como um todo. Sem a intervenção robusta do Governo, acho difícil a escola pública alcançar um bom patamar, nesse assunto. E não se pense que se trate apenas de comprar computadores e colocar internet na escola. É muito mais que isso. Trata-se de implantar uma cultura. Não é tão simples. Em segundo lugar, escolas e professores podem operacionalizar muitos recursos, sem grande dificuldade. Se se considera a cultura dos atuais alunos, não se pode desprezar o trabalho em grupo, não se pode imaginar ensino/aprendizado sem internet e outros tantos recursos hodiernos. Professores podem inventar mil formas de estarem mais presentes com seus alunos. Sei que há muitas dificuldades para as escolas. Uma delas, não sei se grande ou pequena, a própria superintendência de ensino que, na maioria das vezes, se reduz ao controle dos dados. Dados e mais dados. Costumo dizer: uma superintendência deveria sempre se colocar esta questão: se ela deixasse de existir, a educação, o ensino pioraria? Uma escola que queira, pode melhorar muito as condições de trabalho de seus professores, com enorme proveito no aprendizado, que é o que conta. Desculpe se não respondi à pergunta. É que, depois de uma longa vida sem sair da escola, não consigo dar importância aos aspectos meramente materiais da vida escolar: dias letivos, carga horária, cumprimento pleno do programa, disciplina como finalidade e tanta coisa mais que não garante qualidade no ensino e, menos ainda, aprendizado satisfatório.

Você acha que, antes de se ter uma vacina, é possível retomar as aulas presenciais? Confesso-lhe, em toda simplicidade, que não sei responder, à altura, a essa pergunta. Confio, pelo que ouço, na imunidade coletiva. Tenho plena convicção sobre o mal que a ausência da escola tem feito às crianças. E mal com consequências posteriores imprevisíveis. Além disso, não poderemos passar o resto da vida sem correr risco. Variados. Muitos. Só não podemos continuar correndo o risco de termos escolas que não ajudem seus alunos na construção do conhecimento e na sua formação para a vida em sociedade.

 

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