Ataques a estátuas pelo mundo pode chegar à região histórica mineira?


Entrevistas

José Venâncio de Resende0

Estátua de Tiradentes em São João del-Rei (Foto: José Antônio de Ávila).

Europa e Estados Unidos foram varridos por protestos antirracistas do movimento “Black Lives Matter”, na esteira da morte do afro-americano George Floyd pela polícia em Minneapolis em 25 de maio. Os protestos avançaram para ataques a estátuas de navegadores, colonizadores, traficantes e donos de escravos, missionários e líderes políticos, incluindo figuras históricas como Edward Colston, Cristóvão Colombo, Padre Antônio Vieira, Winston Churchill e o bandeirante Borba Gato.

Há algum risco de ataques a estátuas chegarem aos inconfidentes da região histórica mineira do Campo das Vertentes? O professor Danilo José Zioni Ferretti, do Departamento de História da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), tem dúvida de que “atos de iconoclastia” como estes cheguem à região, pois “desconfio que não haja movimentos organizados e com força que tenham como pauta tais ações, ainda que haja em alguns meios um evidente mal-estar em relação a esses monumentos”.

Nesta entrevista ao JL, Danilo Ferretti fala do significado dos protestos antirracistas e das contestações a monumentos históricos.

Como o sr. está vendo o movimento antirracista que começou nos Estados Unidos e espalhou pela Europa? Como a resposta legítima a um enorme mal-estar social que tem sua raiz em formas de dominação impostas principalmente aos negros dos EUA e outros países, o racismo, mas que não ficam restritas somente a ele. Os protestos surgem nos EUA, mas se espalham um pouco por todo o mundo ocidental, agregando outros grupos descontentes, sejam outras minorias étnicas, sejam marginalizados por questões socioeconômicas. Vejo os protestos como reação imediata a violências impetradas contra direitos civis básicos, que incidem há muito tempo sobre os negros dos EUA e que tiveram o poder de catalisar e aglutinar um mal-estar de amplos setores gerado por uma crise do neoliberalismo, que se arrasta por mais de uma década e que foi muito agravada pela conjuntura da pandemia.

Qual é a sua leitura sobre os ataques a estátuas tanto na Europa quanto nos Estados Unidos? Acredito que os ataques a elas expressem esse mal-estar social bem mais amplo de que falei acima. Mas também dizem respeito a questões mais precisas sobre o modo como se lida coletivamente com a questão da memória. E essas estátuas são uma forma própria de expressar a memória, são aquilo que se chama de monumentos intencionais, construídos com a finalidade explícita não só de lembrar, mas também de homenagear, de exaltar algumas figuras, eventos ou processos históricos. E os ataques colocam no centro do debate a questão mal resolvida da memória da escravidão e do colonialismo, em âmbito mundial.

Figuras em geral relacionadas com os negros… As figuras que foram alvos dos protestos são aquelas identificadas, principalmente pelos movimentos negros, mas também indígenas e outros, como representantes da escravidão, do colonialismo ou do racismo, em suma, de alguma forma de opressão histórica cujos efeitos não ficaram restritos ao passado, mas atingem diretamente seu presente. São símbolos, em praça pública, da opressão que ameaça suas vidas. Pois é bom lembrar que a violência não se exerce só pela agressão física, mas tem também uma dimensão simbólica. Ela se exerce pela cultura, que molda a maneira como entendemos a realidade e, consequentemente, como agimos sobre ela. E esses marcos simbólicos, como as estátuas, vêm revestidos de certos valores que muitas vezes são mobilizados para encobrir práticas de dominação; pois memória não é só lembrar, mas também esquecer, esconder certos aspectos do passado. E, nesse sentido, vejo como compreensíveis os ataques e justas as problematizações realizadas pelos movimentos negros de todo o mundo. Eles demonstram a força de sua ação coletiva. A prova é que nunca se discutiu tanto sobre o papel dos monumentos na sociedade e o legado da escravidão e do colonialismo como agora.

Podemos olhar para os casos, particularmente? Comecemos pelo principal. O caso da estátua de Edward Colston, em Bristol, que foi arrancada de seu pedestal e jogada no rio Avon. Colston fez muito dinheiro no séc. XVII dentre outras coisas como traficante de escravos, uma vez que participava da Royal African Company. Quando morreu, em 1721, doou muito dinheiro para obras de caridade, tendo início um culto público à sua pessoa, apresentado só como filantropo, que se manteve ao longo desses três séculos e vem até os dias de hoje. Ele virou estátua (em 1895) e deu nome a ruas, praças, teatro, escolas, etc., ajudando a construir uma identidade local que foi incorporada por amplos setores sociais, inclusive da classe trabalhadora. Desde a década de 1920, um erudito pastor protestante começou a trazer a público o envolvimento do “santo” Colston no tráfico de escravos. Desde os anos 1990, há um movimento, impulsionado pela comunidade negra de Bristol, pelo reconhecimento público do envolvimento de Colston no tráfico de escravos. Desde pelo menos 2015, havia uma solicitação junto à câmara municipal para que fosse colocada uma simples placa na base da estátua informando da participação de Colston no tráfico de escravos. A medida, modestíssima, foi barrada. Diante da recusa de qualquer diálogo ou reconhecimento público, em um contexto preciso de protesto generalizado, houve a reação na derrubada da estátua. Ela poderia ter sido evitada se houvesse mais abertura ao diálogo dos demais setores da cidade e encaminhamento do reconhecimento da demanda por outras vias.

E o caso do Padre Vieira? O problema no caso do Padre Vieira diz respeito à sua defesa do tráfico de escravos negros, fato atestado por historiadores como Luiz Felipe de Alencastro, que mostrou em seu livro “O trato dos Viventes” como os jesuítas eram agentes diretos do comércio negreiro principalmente na ponta africana. Não conheço envolvimento direto em transações comerciais escravistas por Vieira, mas claramente ele se empenhou em legitimar a escravidão negra, o que pode ser atestado pela leitura do sermão XXVII do Rosário, pregado na Bahia a escravizados e senhores. Nele o missionário defendeu não somente que a escravidão era fruto do pecado original e necessária para a salvação da alma dos africanos, mas também mobilizou a teoria paulina da obediência às autoridades para exortar os escravos à submissão total aos senhores. Mas Vieira tinha outra visão quanto à escravização dos indígenas, sendo, no geral, contrária a ela e por isso se batendo contra os bandeirantes paulistas e outros colonos.

Prevaleceu a imagem do protetor dos índios? Essa imagem do Vieira “protetor dos índios” foi recuperada no séc. XIX por certos setores católicos, ou que lutavam contra a escravidão, portugueses e brasileiros, e deu origem a uma certa memória que o apresentava como uma espécie de paladino da liberdade dos povos não europeus, escondendo, portanto, sua participação como defensor do tráfico atlântico. Já no séc. XX, Vieira foi mobilizado para reforçar certa imagem condescendente de um colonialismo português supostamente mais “humano” e “tolerante” com a diferença, que muito serviu para legitimar a dominação sobre as colônias africanas. É essa memória feliz, mas limitada e parcial, de Vieira abraçando indiozinhos e alçando a cruz, defensor dos “direitos humanos”, conforme diz a placa aos seus pés, que foi transposta para a estátua erguida em praça pública, por iniciativa da Misericórdia, da Câmara Municipal, da Companhia de Jesus e do Patriarcado lisboetas, em 2017. Resta saber se é uma visão sobre a colonização pertinente à complexa e plural sociedade portuguesa do século XXI e aos indícios históricos existentes. As pinturas feitas na estátua indicam que nem todos aceitam essa imagem idílica do colonialismo português, que falseia pelas omissões que comete.

E em relação aos bandeirantes? Quanto aos bandeirantes, é consenso na historiografia atual seu papel primordial como escravizadores de indígenas, que serviam como força de trabalho da economia do planalto paulista voltada ao abastecimento interno da colônia ao longo do séc. XVII, sendo “Negros da Terra”, de John Monteiro, o principal estudo sobre a questão. A partir do final do séc. XIX e ao longo de quase todo o séc. XX, eles foram recuperados e heroificados inicialmente por setores da elite cafeicultora de São Paulo, que se projetava econômica, social e politicamente em âmbito nacional e procurava criar uma identidade paulista que destacasse os valores da energia, iniciativa econômica e ocupação territorial, fator esse hiperdimensionado que acabou minimizando as práticas escravistas. Havia também uma clara dimensão racista nessa figura heroificada, na medida em que, para a maioria dos autores, até os anos 1930, a energia dos bandeirantes era explicada por um tipo próprio de mestiçagem que excluía o elemento negro, visto explicitamente como um entrave ao progresso nacional. Se a elite paulista em ascensão e busca de legitimação de seu poder na Primeira República começou com esse processo de uso do passado, ele acabou vingando em âmbito nacional, sendo levado adiante, ao longo do séc. XX, por agentes diversos em outras partes do Brasil.

Quer dizer, o “bandeirantismo” paulista foi capturado? Getúlio Vargas fez uso da “Marcha para Oeste” bandeirante para justificar políticas de colonização do Centro-Oeste, Juscelino Kubitschek posou de bandeirante ao construir Brasília, a ditadura civil-militar fez farto uso do “espírito bandeirante” para justificar seja seu terrorismo de estado (a Operação Bandeirante) seja seus projetos de ocupação destrutiva da Amazônia. Crescemos vendo estátuas e outros marcos simbólicos de bandeirantes, normalmente atrelados a uma visão laudatória da modernização que suprime o questionamento de seus custos sociais e ambientais.

E houve alguma reação? A situação mudou no começo do séc. XXI com a crítica aos efeitos de uma modernização conservadora sobre certos setores, principalmente indígenas. Alguns militantes indígenas questionaram e chegaram a pintar, em 2013, o Monumento às Bandeiras no contexto de protestos contra mudanças de critérios de demarcação de terras, em ato simbólico de uma luta por causa bem concreta. Hoje é Borba Gato que está na alça de mira - obra de 1963, de Julio Guerra, artista dedicado a engrandecer o bairro paulista de Santo Amaro.

Cada caso é um caso? Cada caso tem suas especificidades que dizem respeito não somente aos aspectos da vida dos personagens homenageados, mas principalmente aos agentes e modos como o foram.

O sr. acha correto interpretar os fatos históricos no contexto de hoje? Em algum grau isso é inevitável, ainda que deva ser controlado. Vivemos no presente, com nossas particularidades e não podemos nos desfazer completamente delas, sendo essa consciência a primeira condição para tentarmos evitar deformações excessivas em nossas apreciações do passado. O importante é não mobilizar o argumento do anacronismo, ou seja, a preocupação em não impor nossa visão do presente sobre o passado, somente quando ele serve à crítica das práticas de iconoclastia, mas ver que a visão da própria monumentalização, de um Vieira “defensor dos diretos humanos”, por exemplo, é um enorme anacronismo, na medida em que essa ideia sequer existia em sua época.

O importante é que as estátuas ajudem a compreender o passado? Pensar essas estátuas como vetores de memórias ajuda a compreender os embates que despertam. Quando falamos em memória, estamos falando na forma como os diversos grupos fazem uso, no presente, de experiências vivenciadas no passado. E ao trazerem esse passado para o nosso presente sempre há uma escolha. Memória é essencialmente seleção de partes do passado a serem iluminadas pela lembrança e outras a serem esquecidas. E essa seleção, de alguns personagens ou eventos, está relacionada aos valores que o grupo responsável por fazer essa recuperação considera dignos de serem difundidos coletivamente. Por isso acho que sempre temos que perguntar quem participou da elevação desses monumentos? Quando? Sob quais condições? Quem financiou e decidiu o que seria homenageado? Quais os valores políticos e sociais difundidos através daqueles monumentos? Qual efeito eles têm na sociedade em que são construídos? Pois é ilusão acreditar que exista algo como “A história”, entendida como uma instância autoevidente, neutra e a que se deve obediente veneração. O que trazemos do passado é sempre uma escolha feita por alguns agentes, visando a algum efeito sobre o conjunto da sociedade, e que traz a marca da particularidade dos valores desses agentes. A memória, em suma, nunca é neutra, está sempre lidando com valores sociais e com o poder.

Mas não se trata de inventar o passado... Isso não implica, no entanto, que seja válido inventar arbitrariamente o passado para atender às demandas do presente. Nesse inevitável processo de seleção, iniciado pelas próprias questões que levantamos aos documentos do passado, há um limite do aceitável, dado pelo respeito às regras reconhecidas de prova, por fontes documentais, e argumentação racional.

O sr. acredita que estes atos de vandalismo contra estátuas cheguem à região, que tem muitas estátuas de Tiradentes e outros inconfidentes, como José de Resende Costa, que foram donos de escravos? Não considero que sejam atos de vandalismo, pois não os vejo como violência gratuita, da mesma forma como não vejo as iniciativas destruidoras de nosso patrimônio levadas a termo pelos interesses do mercado imobiliário como atos de vandalismo. Mas as destruições dos militantes e as do mercado imobiliário seguem motivos, padrões e escalas bem diferentes, que não vale a pena explorar aqui.

Então, como poderíamos chamar os ataques às estátuas? Considero que as destruições de monumentos de que falamos são atos de iconoclastia, motivados pela incompatibilidade radical entre os valores expressos nas estátuas e os dos grupos que os atacam. São semelhantes às destruições dos símbolos do nazismo logo após o fim da segunda guerra mundial, ou das estátuas de Lenin após a queda do Muro de Berlim. Não sei se chegam à nossa região, desconfio que não haja movimentos organizados e com força que tenham como pauta tais ações, ainda que haja em alguns meios um evidente mal-estar em relação a esses monumentos. Verdade que já houve intervenções um tanto indefinidas, sem sentido político claro, como aquela que há uns anos cobriu de barro o busto do Padre José Maria Xavier, em São João del-Rei, sem danos para a obra.

Quer dizer, as estátuas dos inconfidentes não estão na mira, pelo menos por enquanto? Quanto às estátuas dos inconfidentes serem alvos por terem sido proprietários de escravos, posso estar enganado, mas só vi essa hipótese sendo levantada por parte de críticos aos grupos antirracistas, como argumento que leva ao extremo o princípio das ações iconoclastas. Até agora, em tudo que li, não vi nenhuma proposta concreta por parte dos grupos de militantes antirracistas favoráveis à destruição de toda e qualquer marca simbólica de proprietários de escravos. E especialmente não vi menção alguma a qualquer inconfidente.

O que o sr. acha de uma sugestão que circula nas redes sociais de que as estátuas deveriam ser transferidas para museus e terem placas com informações completas sobre o papel histórico de cada homenageado, inclusive os aspectos negativos? Pessoalmente, acho que se deve evitar gestos de destruição documental. E considero as estátuas documentos, ainda que não sejam só isso. Também não cabe pessoalmente a mim pontificar sobre a ação dos agentes envolvidos. Eles têm sua autonomia e seus motivos, sendo a iconoclastia uma possibilidade. Sou favorável não à eliminação, mas à ressignificação dos monumentos, por meio de intervenções artísticas e informativas.

Como isto poderia ser feito? Por exemplo, pressionando pela criação de concursos públicos para escolher a melhor intervenção e assim dar início e projeção a debates expandidos, de grande impacto, sobre a memória da escravidão no país, debates que, aliás, já começaram e somos prova disso. Essas medidas confeririam legitimidade às intervenções, na medida em que envolveriam mecanismos de consulta coletiva e garantia do contraditório. Seria, por exemplo, ter o Monumento às Bandeiras definitivamente pintado de vermelho como exemplo do sangue indígena, ou outra intervenção que destaque e marque, ao longo do tempo, a violência do processo colonial. É o que se chama contramonumento, prática recorrente, existindo casos pelo mundo afora. Ele passa a ser outro monumento, com outro sentido. No fim, ao invés da intervenção marcante, mas efêmera da eliminação, onde haviam monumentos à dominação teríamos monumentos críticos à escravidão, construídos sobre os testemunhos eloquentes da tentativa inclusive de justificá-la por meio da cultura. Portanto, não se trata de manter o monumento intacto como uma relíquia. Essa proposta, é claro, vale se a intenção for marcar o espaço público com uma memória crítica à escravidão. Ela não tem efeito se o objetivo for o esquecimento da escravidão.

Que outra proposta? Outra alternativa pode ser a transferência das estátuas para algum espaço em que sua leitura fosse mediada por contextualizações. Ela tem a dupla vantagem de preservar o monumento ao mesmo tempo que evita a difusão acrítica da mensagem pelo espaço público, conferindo informações que ajudarão o receptor a compreender e se posicionar com mais autonomia diante do monumento. Ela, no entanto, necessita de recursos financeiros e humanos para ser realizada. Estas propostas são tentativas de considerar as complexidades que marcam esses monumentos intencionais; pois se eles são vetores de memória, difundindo valores sociais e legitimando práticas políticas, eles são também documentos, nos informando sobre aspectos importantes da época em que foram construídos e das funções que desempenharam.

 

 

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