Empresa portuguesa produz vestuário de marca com resíduos têxteis e agroalimentares

O projeto R4Textiles de economia circular, da empresa Riopele, de Famalicão, já resultou em duas coleções de roupa da marca Tenowa.


Economia

José Venâncio de Resende0

As fases de produção do tecido.

Desde 2016, a empresa Riopele, do município de Vila Nova de Famalicão, desenvolve o projeto R4Textiles, de aproveitamento dos resíduos têxteis (sobras de fios e tecidos) e alimentares (soro e queratina) para a produção sustentável de vestuário da marca Tenowa. O projeto é considerado revolucionário justamente por combinar a reciclagem e a reutilização de resíduos gerados pelas indústrias têxtil e agroalimentar.

Tanto assim que o projeto conquistou o Prêmio Produto Inovação COTEC 2018, da Associação Empresarial para a Inovação - que é o mais importante prêmio de inovação em Portugal -, e o iTecStyle Awards 2018 – promovido pelo Centro Tecnológico da Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal (CITEVE) - na categoria Sustainable Product (Produto Sustentável).

Na visita à Riopele para conhecer o projeto, este repórter foi recebido por Gustavo Marques, do Departamento de Comunicação Empresarial, e por Ângela Teles, engenheira de produto e processo ligada à área de Acabamentos.

É um projeto de economia circular, desenvolvido em parceria com o CITEVE, o Centro de Nanotecnologia, Materiais Técnicos, Funcionais e Inteligentes (CENTI) e a área de biotecnologia da Universidade Católica do Porto. Foi um dos projetos sustentáveis e inovadores apresentados pela Riopele no encontro “Famalicão Circular – novas fronteiras para a indústria” que aconteceu em 16 de outubro no município.

O processo de produção tem início com a desfibrilação dos resíduos têxteis, que assim voltam ao estágio da fibra, tornando-se novamente matéria-prima. Dessa maneira, pode-se obter novamente fios e tecidos.

Se o tecido foi anteriormente tingido, o resultado do desfibramento do resíduo é um fio cinzento (mistura de todas as cores), o que limita o desenvolvimento de novas peças, explica Ângela Teles. A solução, então, é separar os resíduos de tecidos por tonalidades e, no caso do cru, realizar um novo tingimento do fio para se ter uma cor uniforme. Se for mantida a cor original, a matéria-prima ficará com uma cor efeito mescla. Já o fio e o tecido em cru, depois de desfibrilados, resultam em matéria-prima sem cor, que pode ser tingida em diferentes cores, com um resultado mais uniforme.

Outra limitação do fio resultante desse processo está na espessura, explica Ângela. Limitação esta que pode ser superada, ao se trabalhar melhor o aproveitamento do tecido. São tecidos mais pesados, que podem ser utilizados na confecção de casacos, macacões, vestidos, calças etc. Não são adequados para camisas, por exemplo.

Outra parte do projeto está relacionada ao aproveitamento de resíduos das indústrias de laticínios e de carnes no acabamento do tecido fruto da reciclagem dos resíduos têxteis, revelam Ângela e Gustavo. Tanto o soro quanto a queratina são transformados em produtos químicos destinados ao acabamento dos novos tecidos.

A primeira coleção da marca Tenowa, de autoria do designer Nuno Baltazar, foi lançada em 2017 e apresentada na Munich Fabric Start - Keyhouse. A nova coleção já se encontra em exposição no gabinete do Famalicão Cidade Têxtil, ao lado da Câmara Municipal.

Os tecidos da marca devem atingir em 2018 vendas de 500 mil euros (aproximadamente 2,1 milhões de reais), cerca de 1% do volume de negócios da empresa, de acordo com Gustavo. Esta participação deve crescer continuamente, atingindo 7% do total dos negócios em 2022, “afirmando-se assim como um segmento cada vez mais importante para a Riopele”.

O projeto R4Textiles absorve parte dos resíduos têxteis para o desenvolvimento dos tecidos Tenowa, informa Gustavo. “A outra parte é reaproveitada como matéria-prima por outras indústrias.” Aliás, a Riopele procura assegurar que todo o desperdício criado seja reutilizado, reciclado ou recuperado, acrescenta. “A nossa gestão de resíduos assenta na política dos 4Rs: recuperar, reduzir, reutilizar e reciclar. Em 2017, 99,6% dos resíduos gerados na empresa foram valorizados.”

Mais de 90 anos

A Riopele, localizada na Freguesia de Pousada de Saramagos em Famalicão, foi fundada em 1927 por José Dias de Oliveira. É uma das mais antigas empresas têxteis de Portugal, centrando a sua atividade na criação e na produção de tecidos para coleções de moda e de vestuário. Ao se reinventar, a empresa apostou na inovação e nos princípios da sustentabilidade e da economia circular.

A Riopele integra verticalmente todo o ciclo produtivo, desde a matéria-prima até o tecido e/ou a peça confeccionada. Para isso, dispõe de modernas instalações e está equipada com máquinas de última geração que permitem dar uma resposta criativa, rápida e eficaz às tendências aceleradas do mercado da moda.

Um aspecto importante é o estabelecimento de parcerias com centros de investigação (pesquisa), universidades e outras organizações, como a COTEC Portugal – Associação Empresarial para a Inovação. Assim, o fomento da investigação e da inovação, bem como a melhoria contínua, constitui-se numa fonte geradora de vantagens competitivas.

Como resultado, destacam-se os recentes projetos Nano Smart e R4Textiles que, em colaboração com o CITEVE, CENTI e Universidade Católica, permitiram o desenvolvimento de novos têxteis. São exemplos os Çeramica Clean – respiráveis e que repelem a mancha por não absorver substâncias que provocam nódoas – e o Tenowa.

A empresa tem capacidade de produção de 700 mil metros de tecidos por mês, desenvolvidos a partir de fibras naturais, sintéticas, artificiais e recicladas, sendo especializada na composição poliéster/viscose/elastano. Com mais de 90 anos de experiência no desenvolvimento de tecidos, oferece um serviço de vestuário em regime de “private label”, que permite integrar a produção de tecido, com o design, a confecção e a entrega personalizada. A maior parte da sua produção (96%) é destinada às exportações, abrangendo 50 países em todo o mundo.

Tear manual

Um tear manual exposto no Museu da Indústria Têxtil é o símbolo da pré-revolução industrial em Portugal. “Famalicão era uma região agrícola que trabalhava o cultivo do linho e a fiação e tecelagem”, diz Marco Marlier, coordenador do Museu. “Em todas as casas existia um tear manual e as meninas trabalhavam o seu enxoval – todas as peças que elas levariam para o casamento. A arte do tecer era passada de mãe para filha. Também já existiam algumas fábricas com cerca de 30 teares.”

Até que se criaram as condições para a industrialização do Vale do Rio Ave, sobretudo Famalicão. “Cem anos depois da Inglaterra, a revolução industrial chegou a Portugal”, assinala Marlier. Em 28 de outubro de 1856, foi realizada a primeira viagem ferroviária entre Lisboa e a primeira estação do Carregado (cerca de 30 a 35 km), “ponto de partida da revolução industrial”.

Surgia assim o “frontismo”, criado pelo primeiro-ministro Fontes Pereira de Melo, que é o desenvolvimento industrial do país, sobretudo através da via férrea. Assim, em 1870/71, era construída a linha férrea Porto-Guimarães.

A ferrovia facitou o transporte da matéria-prima e do produto industrializado, relata Marlier. É que o linho cultivado localmente foi substituído pelo algodão e o tear manual pelo tear mecânico porque o algodão é a matéria-prima mais adequada a processos mecânicos. Esta matéria-prima era oriunda de Moçambique e principalmente de Angola.

Por volta de 1870, empreendedores brasileiros, na verdade portugueses que retornavam com capital, começaram a chegar a Famalicão. “Esses empresários perceberam que existiam no Vale do Rio Ave terrenos amplos e baratos que permitiam a construção de uma indústria vertical, com todas as fases de produção”, explica Marlier. Assim, “à volta do Rio Ave foram construídas as fábricas do início da indústria têxtil”.

A implantação da indústria foi ainda duplamente beneficiada pela água do rio, tanto para suprir a insuficiência de energia do vapor das máquinas, através das rodas acionadas pela corrente, quanto para o tingimento dos tecidos, que trouxe como fator negativo a poluição do rio.

Outro componente importante era o fator humano, lembra Marlier. Uma sociedade rural e agrícola, com pessoas analfabetas e sem consciência de classe, estava apta a fornecer mão de obra barata. Mesmo estando apenas a 35 km do Porto, o operário em Famalicão ganhava metade da “jorna” (diária).

Cluster têxtil

Os fatores citados acima permitiram que se criasse no Vale do Rio Ave – Guimarães, Santo Tirso, Famalicão, Riba d´Ave e Vizela – um cluster industrial têxtil, resume Marlier. Destacam-se empresas têxteis como a Riopele e a Manuel Gonçalves, assim como a Louropel, produtora de botões há cerca de 40 a 50 anos. “De uma indústria que produzia grandes quantidades a preços baixos, evoluiu-se para pequenas quantidades de muitas variedades.”

Famalicão atraiu empresas e indústrias de outros setores. Em 1896, instalou-se a “Boa Reguladora”, então única fábrica de relógios da Península Ibérica, que durou cerca de 100 anos. A diversificação continuou com a chegada, nos anos 1930, da Pneus Mabor, adquirida posteriormente pelo grupo Continental, que produz pneus de tratores e carros, constituindo a mais produtiva unidade da empresa no mundo.

No setor de alimentos, implantou-se nas décadas de 1970/80 a indústria de transformação de carnes, com marcas como Primor e Porminho comercializadas em grandes supermercados. Outra indústria é a de bolachas e chocolates, instalada há cerca de 30 a 40 anos, com a empresa Vieira de Castro.

Famalicão tem poderio industrial desde a revolução industrial, decorrente de fatores políticos, antropolóticos e naturais, passando de sociedade agrária para sociedade operária, com alteração social, da paisagem e da economia, sintetiza Marlier. O município é hoje o segundo maior exportador e tem a menor taxa de desemprego (cerca de 5%) do país. “O setor tem peso direto na balança commercial e no PIB português.”

Famalicão tem como marca “Cidade Têxtil de Portugal”, pela sua identidade industrial, pelas suas empresas, pelos seus trabalhadores, pelos centros de tecnologia, pela representação empresarial (associação), pelo “cluster têxtil: tecnologia e moda” e “pelo relevante contributo da indústria têxtil famalicense para a economia nacional”, de acordo com publicação da Câmara Municipal.

O município é considerado “o epicentro de uma região que acolhe uma fileira industrial completa, estruturada, flexível e dinâmica – um cluster que já é considerado o maior da Europa”. E “num raio de 60 quilômetros, a indústria têxtil pode oferecer ao cliente todas as soluções necessárias dentro da cadeia de produção”. “Destacam-se grandes marcas, grandes empresas produtoras e infraestruturas tecnológicas e de inovação.”

Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) de 2016 e 2017 mostram que o setor têxtil de Famalicão reúne 856 empresas, que empregam 11.093 pessoas e são responsáveis por um volume de negócios de 771 milhões de euros, dos quais 475 milhões de exportações.

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