Então morreu o Adelmo do Neném...


Homenagem Especial

Donizetti Nogueira Ramos*0

Adelmo do Neném (foto arquivo Vanessa Reis)

Não me lembro de quando o conheci, mas se tornou, ao longo dos anos, figura emblemática no fórum.

O ambiente forense é, na maior parte do tempo, carregado e pesado. Lidamos com assuntos ásperos, crimes às vezes bárbaros, litígios de casais que escancaram toda a fraqueza e hipocrisia humanas. Não é fácil, por exemplo, ter que tomar o depoimento de uma menina de oito anos de idade que foi violentada sexualmente por um tio. A dor daquela criança é tão contagiante que se torna a nossa dor também, ante a revolta, nojo e repúdio que sentimos ao vê-la relatar tamanha barbárie.

Por isso, as audiências do Adelmo se tornaram, de certo modo, um alívio para um ambiente onde a dor e a miséria humana mais predominam.

No princípio, achei deveras estranho aquele cidadão comparecer quase que semanalmente no prédio do fórum para audiências. Todas elas envolvendo carros velhos.

Lá pelas tantas, eu indaguei:

– Mas o senhor está aqui toda semana, cada vez é um processo de um carro diferente. O que está acontecendo?  

Então o Adelmo, aquela simpatia em pessoa, me respondeu:

 – Doutor, eu gosto mesmo é de carro velho. Eu negocio carros e o senhor sabe como é: carro velho tem sempre problemas, principalmente de documentos...

Pronto. Eu vi que não tinha jeito e o melhor era prosseguir com os processos. E o sujeito era realmente “boa praça”, tinha sempre uma proposta de acordo. Quando não podia resolver o impasse ele comprava o carro de volta e ficava tudo acertado.

Uma dia, estávamos numa audiência em que o Adelmo litigava com o “Vicente das Pedras”. De repente, o tal Vicente propôs:  

– Eu te dou duas porcas e uns leitões em troca do carro.

Eu não sabia se ria, se chorava (de rir) ou se suspendia a audiência para ir tomar um café. O Adelmo caiu na gargalhada, olhou para mim e falou:

– Tá vendo, doutor? Olha só o que eu sofro! Agora tenho que criar porcos no lugar dos carros...

Geralmente ele falava nas audiências, quando se sentia acuado pela outra parte do processo: “Calma, rapaz, calma! O doutor Donizetti me conhece e sabe que eu sou do bem, não vou te dar prejuízo.”

Muitas vezes fui duro com ele. Disse que teria que pagar e pronto. Então, o filho do Neném dizia: “Se o senhor está falando assim, tá certo. Que dia que eu tenho que trazer o dinheiro para fazer o pagamento?”

Teve a outra do veículo Monza. Este caso foi mais especial que os outros. Discutiam o Adelmo e um cidadão de Prados sobre desfazer a troca dos carros, porque nenhum dos dois tinha como legalizar a documentação dos automóveis. Depois de muita discussão entre eles, eu intervim e falei:

– Vamos acabar com isso! Vocês destrocam os carros e cada um fica com seu prejuízo. Não tem outra forma de resolver essa pendência.

Eles aceitaram, mas o rapaz de Prados queria que o Adelmo levasse o Monza até aquela cidade... e ele não aceitava de jeito nenhum. Fiz igual Salomão: determinei que o Monza fosse levado até o trevo de Prados e que o outro trouxesse o carro que iria devolver até o mesmo trevo. Processo encerrado. A troca dos veículos seria feita em dois dias.

Não é que dois dias depois me aparece o Adelmo lá no fórum, todo sujo de fuligem, me dizendo que o Monza pegou fogo quando estava sendo levado para o trevo de Prados? Pode uma coisa dessas? Realmente esses fatos só aconteciam com ele...

O Edney, servidor do fórum, me contou que, quando foi fazer o concurso para trabalhar aqui, contratou o Adelmo para levá-lo e o Eustáquio, o “Taquinho” do eleitoral, até Belo Horizonte. No caminho, descobriram que o Adelmo não sabia sequer chegar ao local da prova. Além disso, ele parou o carro na BR só para pegar uns objetos que haviam caído de um caminhão.

Quando as audiências de conciliação passaram a ser feitas por conciliadores, sob a minha supervisão, eu ficava no gabinete e as audiências eram realizadas no salão do júri. Minha esposa Aline, funcionária do Tribunal de Justiça, era a orientadora dos conciliadores. Numa dessas audiências, ela chamou a atenção do Adelmo. Então, ele falou para ela:

 – Fala com o doutor que sou eu, o Adelmo, quem está aqui. – como se dissesse para ela que o juiz já o conhecia e sabia dos casos dele com os carros velhos.

Aline riu do inusitado da situação, mas continuou chamando a atenção dele. Depois me contou o corrido e demos largas gargalhadas.

Esse era o Adelmo. Enrolado com os carros velhos, mas de um coração grandioso. Por falar em coração, um dia me apareceu no fórum querendo mostrar o resultado de uma cirurgia cardíaca. Queria me mostrar a cicatriz e os resultados dos exames, como se eu fosse médico. Eu só entendi a verdadeira razão do ato quando ele, com lágrimas nos olhos ao falar de sua recuperação, me disse:

– Eu confio no senhor.

A mãe dele foi minha vizinha por longo período. Porém, não me cumprimentava. Comentava com os outros que eu era um juiz muito bom porque deixei a neta, filha do finado César, morar com ela quando a mãe reapareceu pleiteando a guarda da garota. Mas não me cumprimentava.

Não é que um dia o Adelmo foi ao fórum e disse ao oficial de justiça que precisava falar comigo urgente e que era um caso de vida ou morte? Preocupado, mandei trazê-lo até o gabinete. Ele entrou e vi que estava falando pelo celular com alguém. Quando eu falei para desligar imediatamente o celular, ele simplesmente me entregou o aparelho e, com a maior naturalidade, me disse:

– É a mamãe, doutor. Ela quer falar com o senhor.

Ainda meio atônito pelo inesperado da situação, peguei o celular e fui conversar com a dona Altair. Ela, com a voz já muito fraca, me agradeceu por tê-la deixado criar a netinha, ao que eu redargui, dizendo-lhe que apenas cumpri meu papel de juiz, em obediência à lei, e que esse julgamento tinha ocorrido havia vinte anos.

Dona Altair disse que estava doente e que não iria durar muito tempo nesta terra. Disse-lhe que não, que ela era forte e iria viver muito tempo ainda. Ela, então, retrucou e me pediu um favor:

– Eu quero que o senhor cuide dos meus filhos depois que eu morrer. Eles são muito enrolados, mas são boas pessoas. Cuide deles para mim...

Uma semana depois, dona Altair partiu para o Reino do Desconhecido. Não sei se cumpri o desejo dela. Na medida do possível, orientei os seus “meninos”. Talvez pudesse ter feito mais...

No dia em que cheguei ao fórum e tive a lamentável notícia do passamento do Adelmo do Neném, senti um vazio, como se tivesse perdido não só um amigo, mas também um filho adotivo. Foi aí que o Rocha, oficial de justiça, me revelou algo que até então eu desconhecia: toda vez que o Adelmo chegava ao fórum, ele perguntava: “O pai está aí?” E explicava: “Esse homem é um verdadeiro pai para mim.”

Todos, inclusive eu, levamos a coisa na brincadeira, acreditando ser mais uma das desventuras do Adelmo. Mas hoje eu penso: um pai é muito mais que um amigo. Talvez fosse essa a mensagem que ele queira me passar.

Adelmo, tenho certeza de que neste momento você está negociando carros velhos nas planícies celestiais e enchendo a paciência dos anjos, alegando que “é só mais um carrinho”.

 

*Juiz de Direito.

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