Nos últimos dias de dezembro, um assunto foi recorrente em rodas de conversa: o desejo de despachar logo 2016. Para a maioria das pessoas, o ano teria sido terrível tanto no Brasil – corrupção, desemprego, surtos de doenças, instabilidade política, acidentes aéreos - como no resto do mundo- guerras, atentados terroristas, catástrofes naturais, acidentes, drama de refugiados. A expectativa popular mirava 2017 como uma espécie de bonança, de redenção. “Esse ano não vai ser igual aquele que passou”, como dizia uma antiga marchinha de carnaval, era uma esperança coletiva.
O ano começou e o que se vê é que tudo não passa mesmo só de uma ilusão. Não apenas fatos que marcaram 2016 se repetem, mas um fantasma pavoroso surge: a exacerbação da intolerância. Sob o signo maldito do muro, concreto ou simbólico, o mundo parece retornar a uma era terrível. O muro com que Donald Trump pretende separar os Estados Unidos do México, o muro para apartar facções adversárias em presídio no Rio Grande do Norte, o muro virtual que do afastamento da Inglaterra da União Européia, a expansão das colônias de Israel em territórios palestinos, à revelia de decisão contrária do Conselho da ONU, a extirpação da beleza da arte de rua dos cinzentos muros das avenidas de São Paulo.
Chega mesmo a dar saudade do pestilento 2016. A reaproximação dos Estados Unidos de Cuba, a suspensão de embargos ao Iran, o acordo de paz entre as FARC e o governo colombiano, a atitude corajosa de Angela Merkel em apoio à abertura de fronteiras para acolher refugiados. Isso sem falar da comovente expressão de fraternidade do povo colombiano à Chapecoense e aos brasileiros, que contaminou todo o mundo como uma memorável epidemia de solidariedade. Basta lembrarmos-nos de acontecimentos como esses, para tomarmos consciência de que 2016 não foi tão desastroso assim.
Face à perspectiva de radicalização da intolerância, talvez 2017 se torne tão temível quanto 2016. Motivos para uma previsão pessimista não faltam. Nada mais compatível com esse espírito de intransigência do que a determinação de Trump: “America, first”. De fato, o first não pressupõe o outro, o não americano (olha a discriminação de novo, como se America fosse apenas os Estados Unidos). Quer significar não América em primeiro lugar, mas uma condição de exclusividade: “America, only”. Esse comportamento, inspirado no “cada um por si”, “salve-se quem puder”, se espalha mundo a fora, numa apologia perigosa do egoísmo, do etnocentrismo. E olha que a situação pode se agravar com a eleição de políticos de ultra direita em outros países, mais factível na França, com Marie Le Pen.
O que fazer para reagir contra essa onda nacionalista, que namora com o fascismo? Às pretensões reacionárias de Trump, a estrondosa manifestação de dois milhões de pessoas na marcha das mulheres em Washington, após a posse do novo presidente, soou como uma rajada alvissareira de defesa da tolerância. Em outras grandes cidades do mundo, multidões se reuniram nas praças públicas para afirmar essa mesma disposição, como um convite à resistência. Se há muros para conter e impedir o diálogo e a convivência entre diferentes, pontes são construídas para estabelecer e solidificar vínculos.
Mas e o Brasil como fica nessa história? Em compasso de espera, o país passa por um período muito complicado. Economia estagnada, desemprego crescente, estados e municípios falidos, governo provisório sem credibilidade suficiente, dirigentes do poder executivo municipal eleitos com o discurso de aversão à prática política, ausência de novas lideranças emergentes. Pelo menos, porém, dispomos de uma oportunidade excepcional para reiniciar o país em bases mais consistentes. A operação Lava jato, sem os personalismos que a identifiquem, pode funcionar como uma ponte para viabilizar, mais do que uma fluente circulação de recursos públicos destinados aos interesses da população, até então retidos pelo muro da corrupção, a existência de um Brasil mais ético, justo e igualitário.
Qualquer movimento para conter as táticas de exclusão só conseguirá se consolidar se, no plano das relações interpessoais cotidianas, tão afetadas por embates políticos nos últimos tempos, prevalecer o valor da dignidade humana e de toda espécie de vida na natureza como um princípio soberano. Essa missão, extensiva a todos que acreditam nessa utopia, pode se inspirar no lema “o paraíso são os outros”, idealizado pelo escritor angolano-português, Valter Hugo Mãe. Bem no polo oposto de quem considera, tal como Trump, que “o inferno são os outros”, expressão cunhada por Jean Paul Sartre, em contexto distinto. Que tal assumir que o contato com o outro, sobretudo o diferente, é a via mais fraterna e saudável para a sobrevivência da humanidade?
*Jornalista, professor aposentado da UFSJ.