Entrevista com Dr. Euclides Garcia de Lima Filho (Tidinho)


Entrevistas

0

JL – Quantos anos de medicina o sr. tem?
Dr. Tidinho –
Eu sou formado em 1957. Portanto, eu estou com 52 anos de medicina, que eu exerço com muita honra.

JL – Como o sr. conheceu o presidente Tancredo Neves?
Dr. Tidinho –
A história remonta a 1929, quando o meu pai, médico recém-formado também no Rio de Janeiro, o dr. Euclides Garcia de Lima, e recém-casado veio para São João del-Rei. Ele conheceu São João del-Rei quando estudava aqui, no antigo Colégio Santo Antonio. E ele gostou tanto da cidade que, quando se formou médico, casou-se com uma paraibana e veio morar em São João del-Rei, numa rua chamada Rua Direita, famosa aqui. Aí começou tudo, porque o papai alugou uma casa em frente à casa onde morava a família Neves, a família do dr. Tancredo - aquela casa que pegou fogo e foi reconstruída. O meu pai morou na casa do outro lado onde mora a mãe do Rômulo Viegas. Então, a mãe do dr. Tancredo – que eu sempre chamei de vovó Sinhá – deu toda assistência à minha mãe, que chegou da Paraíba para morar em São João del-Rei. Ela estava se sentindo muito só, muito abandonada, muito saudosa do vatapá, do girimum... Então, a vovó Sinhá, vendo aquela jovem mulher sozinha – o papai estava trabalhando -, ia pra lá ou então levava minha mãe para a casa dela. Daí surgiu uma amizade que ultrapassou uma simples amizade. Ela se transformou realmente em laços familiares. Eu tenho muita honra, muito orgulho, muita felicidade de dizer que a família Garcia e a família Neves são praticamente uma família só. Foi aí que começou a nossa amizade, e toda amizade que é calcada no amor, no desinteresse, na vontade realmente de ajudar, essa é sincera e é eterna. E ela dura até hoje. A nossa família Garcia e a família Neves até hoje se amam ou convivem com se fossem uma família só.

JL – O que o sr. lembra do Tancredo quando ainda criança?
Dr. Tidinho –
Como criança, eu não tinha a noção do que era um estadista, eu não tinha a noção do que era um político... Eles eram dez filhos – três mulheres e sete homens – e o dr. Tancredo era promotor de justiça quando ele começou aqui. Ele é de 4 de março de 1910. Então, eu gostava dele como gostava de todos os outros irmãos dele... Eles nos tratavam muito bem, nós criança... Mas depois, na minha adolescência, eu já estudando em Belo Horizonte, o Tancredo Neves era deputado estadual. Como adolescente, eu participava da política através do meu pai – o meu pai sempre foi amigo-irmão do dr. Tancredo. Eles eram companheiros inclusive de partido – o antigo PSD -; o papai era secretário e o Tancredo era presidente. Meu pai sempre gostou muito de política, embora sem militar; nunca disputou eleição, não quis. Ele era médico e queria exercer a medicina – eu também... Aí, em Belo Horizonte, naquele meu vigor de adolescente, eu comecei a ver no dr. Tancredo a grandeza de um político - como ele exerce a política com nobreza e dignidade –; a política de Santo Agostinho, que sempre disse que política é a arte de promover o bem-estar do meu irmão. E o dr. Tancredo sempre seguiu essa filosofia. Aí eu comecei a admirar o dr. Tancredo. Eu já era um adolescente buscando por idealismo o bem-estar da minha cidade, da minha terra, do meu país. Eu comecei a aprender a admirar o dr. Tancredo. O homem tinha multifacetas que hoje em dia a gente não encontra fácil, não.

JL – E quais eram essas facetas?
Dr. Tidinho –
Por exemplo, a faceta do homem de família. Como ele era dedicado à sua família, a sua mãe, aos seus irmãos, a sua esposa – saudosa e querida dona Risoleta -, aos seus filhos. Então, era um homem de sólida formação familiar (como parêntesis, eu digo que a gênese de todos os males está na desagregação da família). A outra faceta de Tancredo era a de um homem de fé. Era um homem religioso, ele foi ministro da venerável Ordem Terceira de São Francisco... Nunca deixou, mesmo depois como senador e governador de Estado, de participar da nossa semana santa, carregando uma lanterna humildemente como qualquer cidadão, num ato de devoção... Conheci e admirei também o Tancredo homem culto. Que enciclopédia viva aquele homem! Sabia de tudo, conhecia tudo, a literatura... Tivemos longos bate-papos, eu gostava muito de conversar com ele. Ele dormia à uma hora da manhã e acordava às cinco pra ler. “Como é que o sr. pode agüentar dormir tão pouco assim?” “Tidinho – ele me chamava pelo apelido -, pra dormir eu vou ter a eternidade. Então, eu vou aproveitar enquanto eu posso.” Então, esse homem lia... a gente, às vezes, conversava até altas horas da madrugada. Eu ia absorvendo, saboreando aquela inteligência fantástica daquele homem de cultura... De tudo ele entendia. Andando mais um pouco, nós chegaríamos ao Tancredo amigo. Ele nunca deixou de amparar um amigo em dificuldade. Qualquer amigo, por mais humilde que fosse, ele ajudava, mandava socorrer, e por conta própria. Eu lembro um caso de um borracheiro que era amigo dele, humilde, que sofreu um acidente de automóvel e ele mandou levar esse borracheiro para o Rio de Janeiro, de avião, e internou nos melhores hospitais do Rio de Janeiro para operar... Se não me engano, operou até com o Paulo Niemayer que na ocasião era o rei da neurologia brasileira... Então, era um homem assim sempre participando com amizade, desinteressadamente. Aí nós caímos no Tancredo político. Ele sempre pensou no bem-estar do irmão, nunca pensou nele. Nunca foi corrupto, que hoje virou moda, infelizmente. Que saudade do Tancredo! Um homem que fez a política de mãos limpas, de consciência limpa. Era um político fiel ao seu partido, não é essa dança de partidos à mercê das suas vaidades e das suas ambições. Ele sempre foi fiel aos seus amigos e leal para com os adversários. Eu me lembro que uma vez nós fazíamos um comício numa praça e o nosso adversário da UDN fazia outro comício em outra praça, aqui em São João del-Rei. O dr. Tancredo me chamou e disse: “Tidinho, vai lá na outra praça e vê como é que está o comício de lá, se está mais cheio do que o nosso”. Eu fui, como espião, e tinha um orador exaltado xingando o Tancredo, dizendo que ele não fazia nada por São João del-Rei... Era só blá-blá-blá: “O Tancredo nunca fez nada por São João del-Rei...” Eu voltei e disse: “Dr. Tancredo, lá está animado, mas o nosso está mais cheio. Mas tem um orador lá falando que o sr. nunca fez nada por São João del-Rei...” Então, ele perguntou: “Mas quem é ele?” Eu respondi: “Fulano de tal”... Isso foi num sábado. No domingo, eu fui almoçar com ele. Quem estava lá no almoço? O orador que estava metendo o pau nele. Eu disse: “Dr. Tancredo, o sr. ficou doido?” “Nada Tidinho, a minha máxima política é essa: os aliados eu já os tenho, os adversários eu preciso conquistar. Então, eu o convidei para almoçar pra ver se ele, ao invés de me agredir, passe a me elogiar.” E ficaram amigos... Era o dr. Cid Rangel, um médico famoso aqui em São João del-Rei. Eles ficaram amigos, eram adversários, mas não eram inimigos. O Tancredo era jurista, ele conhecia Direito, conhecia leis – chegou a ser promotor de justiça. Era cívico também. Ele tinha um amor à pátria que fez com que ele se transformasse num segundo Duque de Caxias: era o pacificador, era o conciliador. Era leal, mas firme nas suas idéias. Basta dizer que, no episódio do suicídio do Getúlio Vargas, ele ficou no Palácio do Catete até a madrugada ao lado de Getúlio. Então, Getúlio falou: “Tancredo, obrigado pela sua lealdade; fique com a minha caneta (caneta de ouro que ele tinha)... Eu vou descansar um pouco porque nós vamos resistir aqui no Palácio”. Tancredo disse que nem passou pela sua cabeça que Getúlio fosse suicidar. Aí ele me contou: “Tidinho, eu pedi pra mim um fuzil, embora eu nunca tenha dado um tiro na minha vida. Em lealdade ao presidente, eu fiquei na janela apontando o fuzil sem dar tiro. Aí, eu escutei aquele tiro e saí correndo... eu fui a segunda pessoa a chegar no quarto dele (o primeiro foi o irmão de Getúlio)”. E encontraram Getúlio agonizante. Esse homem multifacetado, e todas as facetas de alta nobreza, de alta riqueza, é uma coisa que a pátria não pode esquecer. Eu elogio o seu jornal de publicar, neste centenário, o meu modesto depoimento num momento em que nós estamos vivendo uma transição, uma carência terrível desses valores do Tancredo; ou seja, carência de política, carência de fé, carência de dignidade...

JL – O sr. não acha que há também uma descrença dos heróis?
Dr. Tidinho –
Já não existe. Eu acho que o Tancredo tem de ser resgatado e elevado a todos os altares da pátria, como ele mesmo falava no discurso dele, “como um símbolo desse resgate de bens morais que devem formatar a personalidade dos homens”. E aí, se essa formatação de dignidade for contagiante, é possível que um dia a gente tenha o resgate realmente das coisas boas e dignas. É muito importante que aconteça isso e só se faz buscando os nossos heróis, os nossos mártires, os nossos homens dignos. Eu me sinto profundamente agradecido a Tancredo Neves por tudo que ele me ensinou na minha vida. Em primeiro lugar, tudo o que sou eu devo a Deus; em segundo lugar ao meu pai, que foi um homem tão digno que sabia escolher seus amigos como o dr. Tancredo; e o Tancredo foi o meu segundo pai.

JL – Quando da admiração o sr. passou a trabalhar efetivamente com o Tancredo?
Dr. Tidinho –
Desde estudante, no colégio, eu o acompanhava em comícios, fazia discursos – ele gostava muito de minha oratória, um dom que Deus me deu... Eu sempre participei de comícios; sempre acompanhei Tancredo Neves nas visitas aos distritos; ajudava no escritório dele, recebendo as pessoas em nome dele, anotando os pedidos... Eu sempre fui o verdadeiro sobrinho de Tancredo Neves, ele tinha muita confiança em mim... Fui motorista dele – ele nunca dirigiu -, ele saía daqui para o Rio de Janeiro... “Tidinho, você podia me levar ao Rio de Janeiro?” Eu ia no meu carro, dirigindo, e ele ia ao meu lado, gesticulando, falando e comendo a gravata (um dos cacoetes dele)... Em resumo, eu fui um verdadeiro assessor, sem pasta e sem remuneração. E muito orgulhoso com isso.

JL – E o sr. conciliava isso com a medicina?
Dr. Tidinho –
Sim. Foi por isso que eu nunca quis cargo eletivo nenhum e muito menos qualquer cargo de confiança porque eu não queria largar a medicina. Ele entendia isso perfeitamente bem.

JL – Fala-se muito que ele não fez nada por São João. O que o sr. considera como marcante da obra dele na região?
Dr. Tidinho –
Eu acho que a obra marcante do Tancredo aqui na região foi uma: a Usina de Itutinga. Basta isso. Nós estávamos falidos – São João del-Rei e região – por falta de energia elétrica. Depois que a estrada de ferro começou a diminuir a sua potência, São João del-Rei sempre viveu de indústria têxtil – nós tínhamos seis ou sete fábricas de tecidos... Como uma fábrica de tecido ia viver? Nossos hospitais operavam aqui com geradores... A Usina de Itutinga foi ele que trouxe para cá, foi ele que conseguiu junto ao Juscelino – ele era secretário de Juscelino -, ele impôs ao Juscelino que ele fizesse a usina... A estrada de Lavras a Barbacena foi ele quem conseguiu fazer, junto ao governo Bias Fortes... O que ele fez para a Santa Casa e pelo hospital – ele foi provedor da Santa Casa -, tanta coisa ele trouxe! A criação do hospital infantil Sinhá Neves, que eu sou fundador e diretor, foi ele como primeiro-ministro que trouxe. Reduzir a mortalidade infantil da nossa cidade de 150 por 1000 para 70 por 1000... Ele trouxe pra cá um conservatório estadual – Minas tem 835 municípios e só sete tem conservatório de música, e um deles é São João del-Rei... Puxa vida! Isso não é nada?