Preocupação com ameaça ao Estado laico, dúvida sobre a capacidade das instituições em resistir a uma eventual tentativa de endurecimento político e o desconhecimento sobre o plano econômico do novo governo são algumas das reações de analistas na imprensa portuguesa (jornais, TVs e rádio) – chamada por aqui de comunicação social – à eleição de Jair Bolsonaro.
A promessa de democracia e liberdade, citada no discurso de Jair Bolsonaro logo após o resultado das urnas, repercutiu nos notíciários de televisão e em manchetes de jornais. Aliás, a comunicação social é um dos pilares sagrados da democracia liberal portuguesa.
Em entrevista à TV SIC, uma comentarista observou o destaque dado à Bíblia por Bolsonaro durante o seu pronunciamento via redes sociais, logo depois da eleição. O jornal Público destacou a presença do senador e pastor evangélico Magno Malta, ao convidar Bolsonaro a rezar antes do discurso da vitória. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, disse Bolsonaro que prometeu um governo “defensor da Constituição, da democracia e da liberdade”. Liberdade como “princípio fundamental” no direito de ir e vir, de empreender, de expressão política e religiosa, de fazer escolhas.
“Contrastando com as suas afirmações de há uma semana, Bolsonaro falou agora em liberdade (palavra que, nas suas diferentes variantes, utilizou 11 vezes), em democracia (6 vezes) e em Constituição (que utilizou, em diferentes declinações da palavra, 3 vezes)”, resume o jornal digital Observador. “Não é claro qual será a versão de Bolsonaro que governará o Brasil nos próximos quatro anos.”
O jornal “I” também referiu-se em sua edição impressa à declaração de Bolsonaro no discurso da vitória: “Defenderei a democracia e a liberdade”. Em editorial, o jornal é categórico: “O Brasil só resolverá um dos grandes problemas da violência quando legalizar a droga, quando voltar a apostar na educação e conseguir ter uma polícia bem paga que fique mais imune à corrupção”.
O popular jornal Correio da Amanhã diz ter ouvido de eleitores que Bolsonaro “representa a esperança de ruptura com o sistema ineficaz e corrupto que mergulhou o Brasil numa profunda crise econômica”.
O eurodeputado e presidente da delegação do Parlamento Europeu para as Relações com o Mercosul, Francisco Assis, disse ao jornal Expresso que “uma parte substancial da Europa está muito preocupada com o que pode suceder aqui no Brasil, com a eleição de um homem com este perfil, desta natureza. Creio que todos os democratas europeus estão a olhar para o Brasil com preocupação e com ansiedade”.
Bolsonaro foi eleito pela “democracia digital” e pelos evangélicos, constatou o analista global Paulo Portas, em seu comentário dominical na TVI - canal de maior audiência em Portugal. É a chegada de um “paraquedista” ao Palácio do Planalto, diz o Jornal de Notícias, num trocadilho com a profissão de Bolsonaro quando ativo no Exército.
E jura “resgatar o Brasil”, atuando como “escravo da Constituição”, complementa o Jornal de Notícias. Para isso, promete luta sem trégua contra a corrupção e a criminalidade violenta, bem como a liberalização da economia.
“Tsunami político”
Paulo Portas, chamou de “tsunami político” a onda que varreu o Brasil e apontou como principais responsáveis os partidos tradicionais PT, PSDB e PMDB. “Sessenta por cento dos senadores foram eleitos pela primeira vez; houve renovação de 52% dos deputados no Congresso; aumento de 6% (para 21) no número de partidos no Senado; e aumento de 5% (para 30) no número de partidos no Congresso (Câmara).” Renovação por um lado e dificuldades na articulação de apoios por parte do novo presidente, complementam outros analistas deste lado do Atlântico.
Segundo o Diário de Notícias (edição de domingo, 28), o presidente eleito, “para governar terá de encarar a selva partidária de 30 partidos, um recorde de fragmentação na história já de si superfragmentada da democracia brasileira”. O partido de Bolsonaro (PSL), “nova segunda força na casa, com 52 eleitos, representa 10,1% dos 513 deputados”. Assim, o novo presidente tem “apenas essa minifatia do bolo parlamentar garantida”. Para assegurar a maioria simples (40%) ou de dois terços (56%), a equipe de coordenação política do novo governo “terá de garantir a governabilidade do país à custa de nem sempre saudáveis negociações”; em outras palavras, “recorrer ao velho clientelismo”.
Em sua edição de domingo (28), o jornal Público destacou o “sentimento de cansaço e revolta dos eleitores”, que levava os candidatos a votos, mas não sozinhos. Foram “acompanhados pelos traumas causados pela destituição de Dilma Rousseff, pela prisão do ex-presidente Lula da Silva, pela mega Operação Lava Jato que não deixou pedra sobre pedra nos principais partidos políticos, pela crise econômica que deixou 13 milhões de desempregados e pela insegurança generalizada, num país onde foram assassinadas mais de 60 mil pessoas em 2016”.
Aliás, no domingo, as edições dos principais jornais já davam como certa a vitória de Bolsonaro no segundo turno. De maneira geral, tanto jornais (reportagens, entrevistas e artigos de opinião) quanto programas jornalísticos na televisão mantiveram um tom bastante crítico em relação à situação política brasileira. Um envolvimento tal como se as eleições fossem aqui em Portugal.
Questões como a apologia do ódio, a influência nefasta das redes sociais, o conservadorismo da sociedade brasileira, entre outras, estiveram sempre presentes. “As patrulhas ideológicas já estão à solta”, diz o jornal Expresso, referindo-se a clubes de elite e ao setor financeiro em São Paulo. “O clima de ofensas e injúrias (nas redes sociais) propagou-se, e as notícias que corriam vagarosamente tornaram-se uma avalancha. Nas famílias e entre amigos esse clima vem aglutinando sentimentos de forma perigosa”, observa o psicanalista Luiz Tenório Oliveira Lima, citado pelo jornal.
Entrevistado pelo Expresso, o diretor da Faculdade de Direito da FGV, Oscar Vilhena, manifestou incerteza quanto à capacidade de as instituições democráticas resistirem “aos arroubos autocráticos”. “Mais preocupante é que a onda conservadora elegeu a maioria dos governos estaduais e está em maioria no Congresso. O que é negativo para a resistência das instituições.” A esperança dele para limitar o “exercício arbitrário do poder” são os “contrapesos”, como Justiça, Ministério Público, sociedade civil e imprensa. “Os próximos anos vão ser de grande tensão, Resta saber até onde a justiça vai resistir.”
Há quem tente comparar Bolsonaro a Donald Trump, mas uma coisa parece certa: o Brasil corre o risco de se tornar uma democracia iliberal ou de governos autoritários, como Hungria, Polônia, Turquia e Rússia. Ou mesmo parecido com países como Áustria, Holanda, Alemanha e Itália, “que têm partidos que defendem essa radicalização extrema à direita”, alerta a historiadora Lília Schwarcz, em entrevista ao Expresso. “Trump é o símbolo dessa onda conservadora”, acrescenta.
Uma das opiniões mais contundentes sobre a situação brasileira foi a do escritor e jornalista Miguel Sousa Tavares, em artigo no Expresso. Deus deu ao Brasil “sete vidas e todas os brasileiros deitaram fora. Deu-lhes um país de sonho, abundante em riquezas como poucos outros no mundo (…) Aliás, Deus no Brasil foi usurpado e é agora representado pelas Igrejas Evangélicas, cujos bispos viajam de jacto privado, vivem no luxo e na abundância, são donos de rádios e televisões e cobram metade efectiva do quinto real aos seus fiéis, com a ferocidade e eficácia de que nenhuma repartição de Finanças é capaz”.
Emigração
“A somar a todos esses problemas, o Brasil enfrenta uma onda de emigração preocupante, já que muitos dos seus empresários e quadros superiores estão a abandonar o país, fartos de tanta insegurança”, afirma em editorial o jornal “I”. “Quem quer viver num lugar que se aproxima de um teatro de Guerra?”
Segundo o jornal, Portugal é o destino de muitos desses brasileiros das classes altas, “possibilitando o desenvolvimento da nossa economia e revitalizando vários setores. A vitória de Bolsonaro é, pois, natural, já que a maioria dos brasileiros acreditam que só com um governo com mão dura, a raiar a ditadura, se poderá pôr cobro a tanta violência e corrupção. Pessoalmente, não acredito que esse seja o melhor caminho”, concluir o editorialista.
De acordo com o Jornal de Notícias, o número de brasileiros com nacionalidade portuguesa aumentou 37% entre 2010 e 2017. “Outro sinal da atração que o país está a exercer sobre os cidadãos do Brasil é o crescendo das autorizações: subiram 64% de 2016 para 2017. A divulgação de Portugal como um país seguro e em crescimento econômico e a crise no Brasil explicam a tendência.”