O Regente da Banda do 11º. Batalhão de Infantaria de Montanha do Exército Brasileiro, de São João del-Rei, o 2º. tenente Antenor Noé de Souza, 52, é o entrevistado dessa edição do JL. Tilú, como é conhecido, sobretudo pelos seus conterrâneos resende-costenses, está há 30 anos no exército e já serviu em várias unidades, entre elas Caçapava (SP), Uberlândia (MG), São Gabriel da Cachoeira – fronteira do Brasil com a Venezuela e a Colômbia, Foz do Iguaçu (PR), Blumenau (SC), Campinas (SP) e Três Corações (MG). Ele é o oficial regente da banda desde janeiro de 2009. Além de maestro, é exímio saxofonista, como bem o definiu seu antigo mestre, o professor Geraldo Chaves, a quem ele dedica, muito emocionado, esta entrevista: “Eu tenho certeza que ele estaria muito orgulhoso em me ver regente da banda do exército, porque no fundo, é muito emocionante falar isso, tudo que eu sou, devo e ofereço a ele”.
Jornal das Lajes - Fale um pouco sobre o início da sua formação em Resende Costa, onde tudo começou.
Tenente Noé - Em 1971, eu estava no 1º. ano do ginásio, na época ainda existia o curso de admissão, e o Sr. Geraldo Chaves (foi professor e maestro da banda de música Santa Cecília durante muitos anos) resolveu criar uma banda de música. Ele foi de sala em sala, pedindo voluntários. E foi aí que eu me apresentei como um dos voluntários. Eu me lembro de que era uma classe com uns 40 alunos e a maioria foi desistindo, sobrando talvez uns 10 e tive a graça de ser um desses. Eu tinha 11 anos quando ele nos levou para ensaiar, dando um instrumento para cada um.
O Sr. Geraldo Chaves alfabetizou musicalmente cada um de vocês?
Sim, todo mundo começou do zero, musicalmente, sem saber nada. Com toda aquela percepção musical superaguçada, ele foi vendo quem tinha dom, era afinado, tinha ritmo e vontade e a partir daí foi investindo nessas pessoas. Ele nos separou, dando aulas em horários diferenciados, intensificando a preparação.
Como foi a escolha do instrumento? Desde o início você escolheu o saxofone?
Lembro-me de uma palavra do Sr. Geraldo Chaves. Falei com ele que o instrumento que eu queria tocar era o piston [trompete]. Aí ele disse: “O que será que tem o piston, que todo mundo quer tocar esse instrumento? Eu preciso de alguém para tocar clarinete”. Foi aí que ele me falou: “você vai ser clarinetista”. Então, o primeiro instrumento que eu peguei foi o clarinete, o qual toquei durante muitos anos. Após uns cinco anos, o pessoal do Penido [família Penido] fez uma doação de instrumentos para a banda e entre eles vieram dois saxofones, um sax alto e um sax tenor. Na época, eu fui a São João del-Rei, na banda do 11 [11º Batalhão de Infantaria do Exército] para eles me ensinarem a escala do instrumento. Então, até 18 anos fui clarinetista. Quando fui para o exército em São João del-Rei surgiu a vaga para sargento, no saxofone. Foi aí que eu me encantei pelo instrumento e nunca mais deixei de tocá-lo.
Dizem alguns músicos instrumentistas que o clarinete é o instrumento de sopro mais difícil de se tocar. É verdade?
O clarinete é um instrumento superdifícil, por isso ele é a melhor escola para o saxofone. Todo saxofonista que já foi um dia clarinetista pode saber que ele tem uma base muito boa. A mecânica do sax é mais fácil e ele é um instrumento de interpretação, de tirar sons bonitos. Já o clarinete é muito difícil. Então, eu diria que quem estudou o clarinete vai para o sax com uma facilidade tremenda, no que diz respeito à parte mecânica. Agora, para a interpretação vale o dom, o talento do músico.
Você foi aluno do professor Geraldo Chaves. Como ele era como professor de música?
O Sr. Geraldo tinha um talento muito grande. Ele dizia que era “professor de tudo, mas não tinha diploma de nada”. Como professor, ele tinha uma alegria imensa em passar o conhecimento aos alunos. Hoje, como regente de banda, consigo visualizar a alegria que ele tinha ao perceber um aluno se desenvolvendo, tocando bem um instrumento. Era uma recompensa, um reconhecimento. Ele era um pai para todo o pessoal. Era às vezes meio nervoso, mas nos tratava com carinho. Não vou citar nomes, mas havia alguns músicos de família mais pobre que tocavam instrumentos mais pesados. A esses ele dava um litro de leite todos os dias, do próprio bolso, para os meninos ficarem com mais vigor para tocar.
E a disciplina?
Ah, sim, ele era muito disciplinador. Gostava de que as coisas andassem certinhas. Inclusive, numa época ele quis me afastar da banda porque eu faltava aos ensaios. Eu observo que normalmente o músico que tem alguma oportunidade tende a uma certa malandragem (risos). É diferente daquele que tem mais dificuldade, que tende a ser mais aplicado. O Sr. Geraldo me deu uma “dura” depois de um ensaio: “se você faltar a mais um ensaio, está fora da banda”. Depois de muito tempo, eu já estando no Exército, ele me falou: “Se eu tivesse te expulsado da banda, seria uma perda muito grande”.
Ele era perfeccionista para ensaiar a banda?
Sem dúvida, pois a beleza da banda é justamente a afinação. Se tiver um instrumento desafinado, ele vai contaminando os outros. Então, ele era, sim, perfeccionista no trabalho, cuidava da afinação. No ensaio, se ele percebesse que havia ali um músico com problemas com a afinação, ele dava uma aula separada para reforçar a embocadura, aprimorar o sopro e fazê-lo com presteza. Era uma banda muito boa, afinadinha e com um repertório muito bem ensaiado. O Sr. Geraldo era um grande mestre. Até hoje sinto muita saudade dele.
Então, ele teve um papel decisivo na sua formação...
Eu posso dizer que eu devo a ele o fato de ser oficial regente do Exército. Falo isso de coração. Se não fosse o Sr. Geraldo, certamente eu não estaria trilhando esse lado de músico profissional.
O que o motivou a ingressar no Exército?
Todo músico de banda civil tende a ver a banda militar como o auge de uma carreira musical profissional. Por onde a banda do Exército passa é um verdadeiro show por causa da perfeição. No exército, como todos são profissionais, você pode cobrar dos músicos os mínimos detalhes no máximo possível. Já numa banda civil, todos são voluntários, então você pode cobrar até certo ponto, senão a pessoa desiste. Estar na banda do exército é como coroar a carreira de um músico, ou possibilitar a ele viver da música, que é outra coisa muito importante.
Você, como militar, serviu em vários quarteis, em diferentes estados do Brasil, conheceu diferentes culturas...
Sim, e agradeço muito a Deus, porque eu não pedi, não queria, mas mesmo assim a oportunidade me foi dada de conviver com outras culturas. O Brasil, embora seja somente um, possui várias culturas, diversos tipos de música, costumes diferentes. Foi uma experiência muito grande que hoje eu aplico frente à banda do exército em São João del-Rei.
O Exército tem essa característica de se mergulhar intensamente na cultura de cada lugar onde se faz presente, não é mesmo?
Exatamente, o Exército vive para aquela comunidade onde se faz presente. Um exemplo: se não fosse o exército na Amazônia, a região seria um caos. Ele oferece atendimento médico, dentistas, locomoção etc. O exército participa da cultura local e procura sempre incentivar o militar a mergulhar naquela cultura.
Como é o aprendizado e o incentivo da música no Exército?
O músico tem apoio total. Nós temos um instrumental de excelente qualidade. Para você ter uma ideia, os instrumentos são da marca Yamaha, de primeira qualidade. Instrumentos caros. Tudo isso para o músico se sentir valorizado, incentivado e ter prazer em exercer sua função. O exército investe pesado na música. Inclusive, nós temos uma orquestra sinfônica, que é sediada em São Paulo, mas viaja por todo o país,
Para ingressar no exército como oficial, além do serviço militar obrigatório, é preciso passar pela Escola de Sargento das Armas (ESA), E o músico, como ele constrói a sua carreira?
Ele inicialmente ingressa na ESA e depois segue para a Escola de Instrução Especializada, no Rio de Janeiro, onde fica durante dois anos. No exército, o músico tem uma instrução especializada.
Mas a arte é algo que muitas vezes extrapola concursos, burocracia. Ou seja, pode ser que surja um recruta genial na arte da música, mas não consegue ingressar na ESA. Como o Exército lida com esses casos?
São casos especiais que às vezes acontecem e que desencadeiam uma polêmica grande. Temos perdido grandes talentos, mas trata-se de uma decisão do alto comando do exército. Eu mesmo já conversei com o general, mas ele me disse que o rodízio de sete anos (tempo máximo que o soldado e o cabo podem permanecer engajados no exército) é uma maneira de dar oportunidade a outras pessoas. Porém, às vezes se perdem talentos e até surgirem outros no mesmo nível leva-se muito tempo. Por exemplo, nós temos um repertório na banda que é executado de cor, como é o caso dos dobrados. Então, quando um músico está ficando no ponto, já está na hora de ele sair. Aí vem outro que precisa pegar do zero, no sentido de repertório, claro.
Falando em repertório, como é a escolha das músicas numa banda militar?
Nós temos o repertório de “dobrados”, que é mais de dentro do Exército e é executado em ocasiões solenes, desfiles etc. Sempre que vou montar um repertório, procuro ouvir as pessoas, os músicos, para saber o que está agradando. Num concerto, eu sempre gosto de encerrar com um clássico, que irá caracterizar que se trata de uma ocasião nobre, solene. Dependendo da apresentação, a gente escolhe um repertório mais popular. A banda tem um repertório vasto.
Os dobrados agradam tanto aos militares quanto aos civis, não é mesmo?
Ah, com certeza. Aonde a gente vai, sempre tem alguém que pede um dobrado. Há aqueles mais conhecidos e que nunca deixam de ser executados, como “Batista de Melo” e “Avante, Camaradas”. É característica da banda militar tocar esses dobrados com perfeição, com todos os detalhes da dinâmica musical.
Qual é a função da banda dentro do quartel?
A banda tem a função de dar vibração ao militar. Você imagina um desfile militar sem a banda? É aquela coisa sem vibração, sem vida. Agora, a banda à frente tocando um dobrado contagia todos que estão em forma. Vou dar o exemplo de uma tropa que está saindo para o acampamento, onde vai passar uma semana no mato, com mochila, fuzil e todo o equipamento. A banda toca na saída dos militares e a vibração é fantástica. E é maior ainda na volta do acampamento, quando o militar retorna ao quartel; o cara está cansado, exausto, depois de uma semana, chovendo. Aí a banda o recebe, começa a tocar. Cria-se um novo ânimo, muito grande. Eu falo por experiência própria. Em 1987 a banda foi fazer o “curso de montanha”, que todos têm que fazer, e a conclusão do curso é uma marcha que sai da Serra do Lenheiro com destino ao quartel. Quando chegamos à esquina da subida do quartel, todo mundo já estava exausto, principalmente os mais gordinhos. Todo mundo se arrastava. E nos perguntávamos por que quando todo mundo sai para a marcha a banda toca e agora que a banda saiu não tem ninguém pra tocar!?. Aí veio a surpresa. Quando subimos marchando, lá estava a banda de música da prefeitura de São João del-Rei nos recebendo. Aí eu pude sentir na pele o efeito da banda. Todo mundo que estava exausto se rejuvenesceu e subiu aquele morro como se estivesse saindo naquela hora do quartel.
“A banda tem a função de “relações públicas” do Exército. Além disso, ela mostra que o militar é uma pessoa como qualquer outra”
Entrevistas
Por André Eustáquio 12/11/20100
