Música e preservação do patrimônio

“Resende Costa já perdeu grande parte de sua história musical com o descarte de documentos musicais, o que acontecia geralmente após o falecimento dos proprietários dos documentos. Isso é uma perda imensurável, visto que são documentos únicos”


Entrevistas

Por Vanuza Resende0

fotoO maestro Wagner Barbosa (esq.) ao lado da presidente do Coral e Orquestra Mater Dei, Ângela Resende, e do bisneto do Christóvam Pinto, Guilherme Mello (foto div

O regente do Coral e Orquestra Mater Dei, Wagner Barbosa da Silva, 30 anos, está à frente dos trabalhos do grupo há quase uma década. Atualmente, Wagner Barbosa, o Waguinho, está trabalhando no processo de tombamento do arquivo histórico do Coral e Orquestra como patrimônio histórico e cultural do município de Resende Costa.

Com formação técnica pelo Conservatório Estadual Padre José Maria Xavier, de São João del-Rei, Waguinho também possui formação superior em Engenharia de Produção e Logística. Ele é funcionário público da prefeitura de Resende Costa, sendo instrutor de música. Na Orquestra, além de regente, atua como professor, arquivista e, como ele mesmo descreve, acaba sendo o responsável por praticamente tudo em relação à atuação artística do grupo.

 

Conte-nos um pouco da história do Coral e Orquestra Mater Dei. A tradição musical em nossa cidade é bem antiga. Existem registros de atividade profissional já na década de 1840, na Festa de Passos promovida pela Irmandade do Santíssimo Sacramento, logo após a criação da paróquia. Nossa orquestra não tem o ano preciso de fundação, mas, de acordo com fontes históricas, foi criada no início da década de 1870 pelo músico e professor de primeiras letras Pedro Alves de Andrade Neto. Pedro foi responsável pelo grupo até o ano de 1900, quando faleceu repentinamente. O grupo já possuiu diversos nomes, como “Grêmio Musical de Santa Cecília - Lage de Tiradentes”, “Orquestra Santa Cecília”, “Orchestra Nossa Senhora da Penha” e, desde a década de 1980, possui o nome de “Coral e Orquestra Mater Dei”. Dentre seus regentes, destaco os compositores Christóvam Gonçalves Pinto e Joaquim Pinto Lara, que deixaram inúmeras obras para banda e orquestra. Regeram também a Orquestra Agostinho Matheus de Assis, Maria Aleluia Mendonça Chaves, Terezinha Macedo Lara e Maria da Penha Sousa. Desde 2013, ela está sob a minha direção.

 

Atualmente, quantos músicos fazem parte da Orquestra? Contamos com um total de 40 integrantes ativos, entre instrumentistas e cantores.

 

A Orquestra abre vagas para novos membros? Sim, recentemente abrimos vagas para aulas de teoria musical, para as quais os alunos realizaram sua inscrição e hoje já estão frequentando. São duas turmas somando mais de 20 alunos que estão iniciando os estudos musicais. Também estamos com 17 alunos que já realizam os estudos teóricos e hoje estão realizando seus estudos nos instrumentos.

 

Como são as frequências de ensaio e apresentações? Os ensaios costumam acontecer em média de uma a duas vezes por semana, entre ensaios de naipe e geral. Variam muito de acordo com as épocas do ano. Para a Semana Santa, por exemplo, precisamos ensaiar mais devido à extensão do repertório, que ultrapassa a quantidade de 100 composições diferentes executadas ao longo das celebrações. As apresentações acontecem geralmente atreladas à Paróquia de Nossa Senhora da Penha de França, onde o Coral e Orquestra Mater Dei já tradicionalmente é responsável pela parte musical de algumas celebrações, como Semana Santa, Corpus Christi, Festa da padroeira, Natal, entre outras, o que influencia diretamente na frequência de ensaios, visto que cada celebração exige um repertório específico para seguir corretamente a liturgia. Fora esses compromissos com a Igreja, também realizamos concertos e apresentações esporádicas em Resende Costa e outras cidades.

 

A orquestra carrega uma história ao longo desses mais de 150 anos. E agora o arquivo histórico do Coral e Orquestra está passando por processo de tombamento para se tornar patrimônio histórico e cultural do município. Como surgiu a proposta do tombamento? A ideia do tombamento surgiu a partir da presidente da instituição, Ângela Maria de Resende. Grande entusiasta da Orquestra e incansável na luta pela melhoria e preservação do grupo, Ângela fez uma indicação ao Conselho Municipal de Patrimônio e Cultura no início de junho deste ano, pedindo que o arquivo histórico do Coral e Orquestra Mater Dei fosse tombado, apresentando todos os dados históricos que comprovam a importância do tombamento, visto que o Coral e Orquestra Mater Dei já é inventariado como patrimônio cultural imaterial do município. O Conselho de Patrimônio e Cultura acatou a solicitação, aprovando então o tombamento provisório, que, após seguir os trâmites e prazos legais, assumirá o caráter de definitivo. Ficará pendente somente a elaboração do dossiê de tombamento, que deve ser enviado para crivo do IEPHA. Lembrando que qualquer cidadão pode requerer o tombamento ou inventário de qualquer bem, seja ele o proprietário ou não do bem. Assim, o Conselho de Patrimônio inicia o processo para pesquisar se existe interesse histórico e cultural dos bens. Caso exista, inicia-se o processo de tombamento junto ao proprietário.

 

O que muda a partir do tombamento do arquivo? Com o tombamento, o bem tombado fica sujeito à proteção e à fiscalização por parte do poder público, que reconhece o arquivo como bem histórico e cultural do município, podendo realizar ações de preservação e educação patrimonial. Neste momento, o arquivo de partituras e livros está sendo higienizado, catalogado e acondicionado em embalagens confeccionadas em papel de qualidade arquivística, tudo para garantir a preservação e maior durabilidade dos documentos.

 

Quais documentos compõem o arquivo histórico da Orquestra? O arquivo é composto em sua maioria por manuscritos musicais dos séculos XIX e XX, copiados por inúmeros músicos de Resende Costa, São João del-Rei e Tiradentes. A partitura mais antiga do arquivo é datada de 1875 e, segundo consta, é de autoria do compositor Martiniano Ribeiro Bastos. Além das partituras, também compõem o arquivo livros de música antigos, fotografias, instrumentos musicais e outros objetos.

 

Qual a sua avaliação sobre o processo de tombamento? Avalio de forma muito positiva. O tombamento é uma garantia de preservação desses bens que não podem se perder, visto que agora o poder público deve contribuir para com a preservação do arquivo e garantir que o mesmo não seja degradado. Resende Costa já perdeu grande parte de sua história musical com o descarte de documentos musicais, o que acontecia geralmente após o falecimento dos proprietários dos documentos. Geralmente os herdeiros consideram ser um monte de papel velho, não enxergam utilidade e valor, e acabam descartando os documentos. Isso é uma perda imensurável, uma vez que são documentos únicos. Com o tombamento, o Coral e Orquestra Mater Dei está aberto para receber doações de partituras, livros, instrumentos, fotografias e garantir a preservação dos mesmos. Ou seja, tudo que possa agregar valor à história musical de nosso município, que é tão rica e deve ser preservada e divulgada.

 

Em junho, vocês divulgaram que foram até Carandaí, na casa do Sr. José Antônio, neto do compositor e ex-regente da orquestra, Christóvam Gonçalves Pinto, e receberam alguns itens que passaram a compor o memorial da orquestra. Quais foram esses itens? E como foi essa busca? Outras estão previstas? Guilherme Mello, bisneto de Christóvam, iniciou o contato com o perfil da Orquestra Mater Dei no Instagram. Grande entusiasta da música, Guilherme toca alguns instrumentos e já possui algumas composições. Começamos a conversar sobre a história de Christóvam e ele, sempre muito solícito, foi nos contando as várias histórias acerca do compositor e também relatou que possuía ainda alguns bens dele na casa da família. Christóvam mudou-se para Carandaí no final da década de 1910 e, como era comum na época, levou todo seu arquivo musical construído até então em Resende Costa. Durante a visita, nós conhecemos todas as partituras que ficaram com a família, objetos que pertenceram ao compositor, rascunhos, anotações, uma infinidade de material que deve ser estudado e organizado. A maior parte do arquivo do compositor ficou com a banda local em Carandaí e hoje está sendo estudada e catalogada pela Universidade Federal de São João del-Rei, através do Departamento de Música. Continuamos em contato com a família e nos dispusemos a ajudar na organização do arquivo em visitas futuras. Recebemos uma batuta que pertenceu a Christóvam e agora está exposta no memorial da Orquestra, juntamente da flauta de madeira que foi do irmão do compositor, João Gonçalves Pinto, e que foi doada para a Orquestra pela sua neta Matilde em 2020. Recebemos também partituras importantes para o estudo da Orquestra, como um manuscrito do dobrado “O Municipal”, composto por Christóvam para orquestra e dedicado ao Coronel Mendes, e também um conjunto de uma overture, uma abertura para orquestra, que contém o carimbo do Grêmio Musical de Santa Cecília da Lage de Tiradentes, anterior à emancipação do município.

 

Quem tiver em casa algum documento ou objeto que conte a história da música em Resende Costa e queira doá-lo para o memorial do Coral e Orquestra Mater Dei, como deve fazê-lo? Aproveito o espaço para dizer que o Coral e Orquestra Mater Dei está sempre aberto a todos que desejam contribuir com o grupo e que neste momento, com o tombamento do arquivo, precisamos da ajuda da população. Caso alguém possua partituras, livros e cadernos de música, fotografias, instrumentos antigos, pode fazer a doação para o Coral e Orquestra Mater Dei para que os mesmos sejam incorporados ao arquivo histórico e preservados. Recentemente vimos um arquivo ser jogado no lixo para a reciclagem e não podemos deixar que esse fato se repita! Também recebemos doações de instrumentos para uso dos alunos. Possuímos hoje uma quantidade de instrumentos para uso dos músicos, mas o número é pequeno, haja vista a quantidade de alunos entusiasmados com o aprender musical.

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