Na volta às aulas, recuperar o “tempo perdido” exigirá “muita tranquilidade”


José Venâncio de Resende


Professor Heitor Antônio Gonçalves, doutor em Educação (foto arquivo pessoal)

Fala-se muito em recuperar o tempo perdido no retorno às aulas. Mas essa ideia tem de ser vista com muito cuidado. De nada adiantam ações no sentido de tentar recuperar “esse tal tempo perdido” para os alunos se os professores também não tiverem as condições necessárias reconhecidas pelo poder público. Essa é a visão do professor Heitor Antônio Gonçalves, doutor em Educação, com atuação nas áreas de Didática e Práticas de Ensino, Educação Matemática e Ensino de Ciências, da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). “Eu acho que tem que ser com muita tranquilidade. Não pode ser algo feito às pressas, com aquela preocupação: vamos tentar alfabetizar num tempo mais rápido, ou então, vamos trabalhar conteúdos de forma mais rápida. O tempo perdido já foi perdido. O que nós temos que fazer agora é uma retomada consciente, tranquila, dentro de uma certeza pedagógica muito grande do que se está fazendo.” E isso demanda muito diálogo.

Nesta entrevista ao JL, o professor fala sobre o impacto da pandemia no ensino, o retorno às aulas e o futuro.

 

Quais foram os principais impactos da pandemia no ensino básico? A pandemia realmente teve um impacto grande porque os alunos, quando deixam de ir à escola, têm uma perda com relação a aspectos do conhecimento escolar, o que vai influenciar na aprendizagem, e também a aspectos psicológicos, mais envolvidos com fatores sociais, porque o aprendizado se inicia na interação com o meio ou com pessoas do seu entorno. Houve, tanto na escola básica pública quanto na escola privada, um impacto muito grande com a paralisação das atividades. O início da modalidade remota de ensino também impactou não apenas a escola pública, como também as particulares.

 

Uma das tarefas agora será avaliar esse impacto… O resultado em termos de aprendizado tem que ser avaliado – em cada país, já estão sendo feitas pesquisas com relação ao estudo desses impactos. Não obstante, é importante dizer, a criança, o jovem ou mesmo o adulto estudante não param de se desenvolver intelectualmente, cognitivamente… A grande defasagem fica por conta do conhecimento escolar (crianças que estão na fase crucial da alfabetização, por exemplo), mas esse aspecto da aprendizagem é plenamente recuperável… Foram, na verdade, quase dois anos porque o ensino remoto não cumpriu, e não cumpre, o objetivo pleno. No entanto, eu acho que tal prejuízo é plenamente recuperável. Nós vamos ter um atraso temporal. É importante frisar que a interação social entre as crianças e os jovens faz parte de um aprendizado naquele grupo, naquela faixa etária. Então, além desse impacto, há outras dificuldades que vão permear isso, como o convívio familiar que ficou muito intenso na época mais dramática da pandemia… Talvez os aspectos psicológicos tenham trazido alguns problemas não só para as crianças, mas também para os pais, os irmãos etc.       

A experiência do ensino on-line contribuiu para aumentar as diferenças sociais? Na verdade, a pandemia descortinou algumas mazelas da sociedade e, por conseguinte, da educação brasileira. Uma delas é justamente a falta de conhecimento da tecnologia e das possibilidades dela como auxiliar do conhecimento… A grande maioria dos alunos, principalmente da escola pública, não tem equipamentos adequados. Há casos de muitas famílias utilizando celulares, alunos utilizando celulares; mas, por outro lado, existem aqueles casos de apenas um celular para a família inteira… Foi uma experiência dramática, não obstante os professores, os coordenadores pedagógicos, os gestores da escola, terem feito um trabalho heroico, tentando diminuir a grande defasagem em termos de aprendizagem. Mas no caso das famílias de baixa renda o drama foi bem maior. Foi uma experiência de ensino que, ao mesmo tempo, acabou criando uma condição para os professores aprenderem… Porém, a falta de infraestrutura, tanto para o aluno quanto para o professor, aumentou realmente as diferenças sociais. Houve, por exemplo, uma grande ausência de alunos nas provas do Enem, os alunos do ensino médio não conseguiram estudar… Então, realmente, nós temos um quadro, também no aspecto dessa experiência do ensino remoto, bastante drástico; e isso acabou realmente aumentando o fosso entre as camadas sociais.     

O sr. acha que as escolas ficaram fechadas por muito tempo?  Nas várias regiões do Brasil e no mundo, as famílias estão passando dificuldades com as crianças em casa por muito tempo, mas a saúde, a vida é mais importante. Então, eu acho que o retorno tem que ser seguro sob todos os aspectos. Quando uma criança retorna para a escola, não é apenas a criança, toda a família retorna junto… Também tem que se fazer estudos sobre o comportamento das crianças na escola nesse momento assim mais imediato, no sentido de quais foram e quais são os riscos, porque elas vão retornar para casa onde estão os seus pais e, muitas vezes, outros parentes como tios, avós, primos… Então, é também uma questão de prioridade que tem que se pensar. Vendo o noticiário que a mídia responsável tem veiculado, eu acho que realmente nós não tínhamos, nem temos, outra opção a não ser a vacinação; é a grande arma que nós temos no momento. Os professores têm que estar totalmente vacinados; tem que ser respeitadas as comorbidades, as doenças preexistentes, que antecederam a pandemia… 

O que o senhor acha do retorno às aulas neste momento? Há notícias de que muitos alunos não retornaram por motivos diversos, como questões financeiras e sociais. O índice de retorno em várias escolas tem sido muito pequeno. Agora em que alguns estados insistem em 100% de retorno, talvez aumente essa presença… Talvez alguns pais estejam aguardando estudos que mostrem se esse retorno vai implicar num índice maior de incidência da Covid nos estudantes… Já temos adolescentes vacinados a partir dos 12 anos, sendo que, basicamente, as crianças não estarão vacinadas – as crianças foram poupadas, de certa forma, mas há que ter estudos que apontem realmente para o comportamento do vírus nessa faixa etária. O retorno às aulas tem que ser seguro, tem que ser apoiado nas conclusões dos cientistas. E deverá ser um retorno com uma adequação comportamental (uso de máscaras, etc.) e uma adequação pedagógica. A minha opinião sobre adequação é diretamente proporcional ao resultado dos estudos calcados na ciência, inclusive em estudos feitos em outros países.

 

Quais são as condições básicas para esse retorno na sua opinião? Primeiramente, nós temos que ter as condições físicas: salas de aula adequadas e o respeito ao distanciamento físico. Essas condições básicas dependem do que a ciência vai nos dizer.  Os profissionais de educação e as crianças têm que ser acompanhados o tempo todo. Espera-se que haja acompanhamento do setor de saúde e dos próprios pesquisadores nos levantamentos dos índices de Covid nesse momento mais crucial de retorno.

 

Como o sr. avalia as medidas do governo de Minas? Foi prometido que essas medidas sejam adequadas às condições das crianças, das salas de aula, das escolas… Esse retorno praticamente está acontecendo com grande intensidade… Antes, o retorno vinha acontecendo por grupos de alunos – em Minas Gerais, optou-se pelo chamado grupo das bolhas, grupos de alunos que retornam em dias alternados de modo a não ter uma concentração muito grande de alunos. Eu acho que existe uma intenção do governo estadual em tomar as devidas providências para que o retorno às aulas seja o mais seguro possível porque há uma condição muito diversa nas escolas, nós temos uma diversidade muito grande de municípios. Nós sabemos que no Brasil há escolas com boas condições de infraestrutura na rede pública, mas também escolas que são totalmente inadequadas, já eram mesmo antes da pandemia; em Minas, também há muitas escolas em condições ruins, estaduais e municipais. Os profissionais de educação e as crianças têm que ser acompanhados o tempo todo. Espera-se que se tenha acompanhamento do setor de saúde, dos próprios pesquisadores para os levantamentos dos índices de Covid nesse momento crucial de retorno... Sabemos que há prefeituras que não estão abrindo mão de certas condições. Então, uma grande preocupação é verificar se essas condições estão sendo adequadas. Nós dependemos de agentes públicos, de agentes de saúde, dos próprios educadores (professores, gestores, entidades representativas) para denunciar, se for o caso, o não atendimento às medidas. 

 

O ensino on-line será incorporado no pós-pandemia? Eu acho que nós experimentamos algumas ações on-line que podem ser mantidas, mas ainda temos na escola pública o grande problema da infraestrutura de equipamentos, da rede de internet, entre outros obstáculos. Isso é uma característica do Brasil. Em termos de escola pública, acredito que  teremos um sistema misto até que haja segurança total – até as coisas melhorarem, até chegar num patamar aceitável para que os alunos, os professores, os funcionários das escolas, os educadores de maneira geral possam frequentar com tranquilidade o espaço escolar com segurança. Penso que ainda vai demorar muito para que a escola pública possa ter um aproveitamento grande de atividades on-line, pois, como já mencionei,  ela não tem infraestrutura, poucos alunos têm equipamento e a rede de internet muitas vezes é problemática. Então, vai ser presencial. A rede privada, com o aprendizado gerado nesse período pandêmico, relacionado com a tecnologia, talvez possa colher melhores frutos.   

 

Como recuperar o tempo perdido? Tem que ser com muita tranquilidade. Não pode ser algo feito às pressas, com aquela preocupação:“vamos tentar alfabetizar num tempo mais rápido”, ou então, “vamos trabalhar conteúdos de forma mais rápida”. Esse tipo de ação, sem um projeto de trabalho, sem uma adequação dos métodos à situação, pode atrapalhar muito mais. A recuperação do tempo perdido tem que ser feita com muita calma, os gestores têm que dialogar com os professores, fazerem um planejamento muito realista, identificar as maiores defasagens, onde e como atacar essas defasagens. Os professores precisam ter condições para fazer um bom trabalho, eles não podem ser em hipótese nenhuma pressionados, no sentido ruim desse termo. Não é saudável nem produtivo que haja esse tipo de pressão negativa, uma vez que o período pandêmico já foi muito angustiante para todos, professores e alunos. Essa angústia tem que ir diminuindo, não aumentando.

 

Muito diálogo… Os educadores têm que conversar, discutir as questões; as escolas precisam promover essas discussões, também com a participação dos pais. Talvez nem seja questão de recuperar o tempo perdido, mas de tentar fazer um trabalho efetivo que possa ressituar esse tempo, um tempo que não foi proveitoso na sua completude. E que isso também recomponha os alunos. Os professores vão chegar às escolas ainda bastante abalados, com certeza, e esse abalo tem que ser enfrentado com muito cuidado. A retomada abrupta, com uma grande pressão e com a tentativa de se passar apenas – e somente apenas – conteúdo não vai produzir o efeito desejado. É hora de tranquilidade. O tempo perdido já foi perdido. O que nós temos que fazer agora é uma retomada consciente, tranquila, dentro de uma certeza pedagógica muito grande do que se está fazendo. Não podemos em hipótese nenhuma, insisto, colocar sobre os ombros dos professores uma responsabilidade que não é só deles; tem que ser compartilhada, os professores tem que se sentir apoiados, tem que se sentir inseridos dentro de um grupo que está tentando resolver os problemas.  

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