Pandemia, oportunidade para adoção de modelo econômico sustentável


Entrevistas

José Venâncio de Resende0

Vera Rita de Mello Ferreira, psicanalista e professora (Foto arquivo pessoal)

Há mais de dois meses em isolamento total, Vera Rita de Mello Ferreira, psicanalista e maior especialista em psicologia econômica do Brasil, concilia afazeres domésticos com exercícios físicos diários, leitura e atividades profissionais. “Eu sou grupo de risco, então eu vou ser das últimas a deixar o isolamento. Agora, tédio zero. Não sinto tédio nenhum. Aliás, eu até queria ter um pouco mais de tempo para ler.”

Doutora em psicologia social, Vera Rita tem atividade intensa em São Paulo. Há 26 anos na área, atua como professora, palestrante e consultora de psicologia econômica, educação financeira e arquitetura de escolha no Vértice Psi Instituto de Psicologia Econômica e Ciências Comportamentais. Além disso, é autora de livros de psicologia econômica, criadora do canal Pílulas de Psicologia Econômica no YouTube (que tem o selo ENEF) e vídeocolunista do Valor Investe. Na quarentena, está oferecendo, pela primeira vez, cursos online na área.

Nesta entrevista ao JL, Vera Rita fala sobre seu isolamento social, dá dicas para atravessar este período de pandemia, comenta a situação do Brasil no enfrentamento do coronavírus, discute a adoção de uma renda mínima universal e fala sobre suas expectativas quanto a “saídas” para o pós-pandemia. “O que eu adoraria ver é que a saída disso pudesse ser feita por meio da ciência voltada para a sustentabilidade, empregando os mais pobres. Quer dizer, o governo não só dando dinheiro, mas também empregando as pessoas em investimentos em sustentabilidade, preparando o País para ficar competitivo pra tudo isso que está vindo.”

Como está sendo o seu isolamento social? Eu estou em isolamento total, praticamente, há mais de dois meses. Eu saio uma vez por semana para comprar coisas na feirinha orgânica, que agora é na rua porque o Parque (Água Branca) fechou. Montei um esquema com uma pessoa de lá, de uma banca. Ela faz a feira pra mim logo cedinho quando ela chega. Eu só vou, pego tudo, ponho no porta-mala, venho pra casa. Faço toda aquela higienização, aquela coisa toda. Isso toma tempo, os afazeres de casa também tomam tempo… Mas eu tenho mantido uma rotina de exercícios fisicos diários. Eu ando uma hora aqui na minha varandinha, que eu brinco que é uma espécie de pequena raia única, só que seca, porque ela é estreita mas compridinha. Então, eu fico andando de um lado para o outro. E daí eu vou alternando, fazendo alongamento uns 40 minutos ou fazendo uma prática chinesa outros 40 minutos… agora, recentemente, comecei a fazer um pouco com uns halteres pequenininhos que eu tenho, porque senão o braço fica muito fraco. Eu estou morrendo de saudade da natação e de andar no parque, que era o que eu fazia. Eu já organizava a minha rotina em uma dessas duas atividades também. Mas não sei quando isso vai ser possível. Eu sou grupo de risco, então eu vou ser das últimas a deixar o isolamento. Agora, tédio zero. Não sinto tédio nenhum. Aliás, eu até queria ter um pouco mais de tempo para ler.

Está lendo algum livro no momento? Eu comecei a reler o “Doutor Fausto”, do Thomas Mann, que é um catatau de 700 páginas. Iniciei, mas tive que parar porque comecei a dar o curso online de Psicologia Econômica. Daí acabou o tempo.

E como você se informa sobre o dia-a-dia? Eu não tenho TV já há muitos anos e eu assisto alguma coisa no tablet, mas às vezes passam duas semanas que eu não consigo ver nada porque não dá tempo. Eu estou fazendo uma atividade voluntária de quarentena, que é ler… eu li já um áudio-livro que eu escrevi em 2008 e daí a Cris – Cristiana Dias Baptista –, que me ajuda com a logística dos cursos, manda para a lista de transmissão. Devem ter umas 800 pessoas que recebem todo dia um capítulo. Eu brinquei no começo que seria como uma novela de rádio, mas não é bem isso. O áudio-livro até já acabou, a quarentena não acabou. Então, eu comecei a ler também o meu livrão, chamado “Psicologia Econômica – Estudo do Comportamento Econômico e da Tomada de Decisão”, que é um guia de referência-estudo de psicologia econômica. Ele está esgotado, então eu já li uma primeira parte. Eu estou vendo que não vai dar para ser “As Mil e Uma Noites”. Minha voz tem ficado muito cansada; essa semana eu comecei a fazer “fono”, porque as aulas e reuniões por Zoom exigem mais da garganta, são mais cansativas. Então, eu estou sentido necessidade de tentar preservar minha voz.

E sobre as atividades profissionais? Eu faço análise online; faço alguns atendimentos online também, estou sempre trabalhando muito. Agora, me convidaram para escrever um capítulo de um livro sobre educação financeira. Ainda nem consegui começar, mas também é para breve. Então, sempre tem muita coisa pra fazer. A quarentena aumentou, de uma certa forma, o volume de trabalho porque tem todos os afazeres domésticos também. E muita gente pedindo coisas: para participar de live etc., mas o tempo é um bem escasso e a gente não consegue fazer mágica.

Quais as suas dicas para enfrentar este período de pandemia? Eu acho que a atividade física é importante em geral. Não descuidar disso não só para a saúde mas também porque ajuda a manter algum tipo de rotina, que é a segunda dica. Então, junta duas coisas. Quem está trabalhando em home office direto até já tem uma certa rotina, mesmo porque tem que trabalhar num determinado horário e tal. Tem gente que tem horários mais rígidos, outros que tem horários menos rígidos, mesmo em home office. Pra quem está mais solto, seja em home office seja porque trabalha por conta própria ou o que for, então é importante ter algum tipo de horário, de rotina. Claro, é interessante até aproveitar para descansar um pouco, já que não tem que ficar no transporte, gastar tempo no trânsito, essas coisas… Então, é bom aproveitar esse tempo também.

Mas, nas atuais circunstâncias, a rotina não deve ser rígida… Não se deve impor uma rotina rígida demais, que é outro problema porque a nossa mente já está bastante demandada pelas circunstâncias. A gente está assim com o Sistema 2 superligado – aquilo que o Kahneman (Daniel Kahneman, teórico da economia comportamental e Prêmio Nobel de 2002) chama “uma violação do modelo de mundo que a gente tinha” – e essa violação é muito grande nesse momento. Então, isso faz com que o Sistema 1, que é o automático, dê uma espécie de parada, porque as coisas automaticamente não podem mais acontecer como aconteciam antes – está todo mundo tendo que ingrenar num outro modo de vida. Então, isso faz com que a gente tenha que ficar mais atenta, mais concentrada, desde ter que lavar a mão muito mais frequentemente até tomar todos os cuidados para não encostar em coisas que possam estar contaminadas, os cuidados com as compras, com tudo. Então, pra tudo isso a gente tem que ter uma atenção, uma concentração…

É bem estressante, né? Tudo isso cansa muito a mente, pode até mesmo chegar a esgotar a mente. Então, não dá para exigir demais nesse sentido: que a gente fique o tempo inteiro prestando atenção completamente no horário, e não pode falhar um instante - a gente vai ficar maluca. E, de outro lado, não pode entregar para Deus, relaxar total porque senão corre o risco de passar a quarentena no sofá enchendo a cara de comida e de bebida, vendo série... porque a inércia sempre é uma tentação, porque é um caminho muito fácil pra gente simplesmente não fazer nada, ter um valor evolutivo. A gente descende dos ancestrais que se pouparam, que pouparam energia. Então, isso está muito presente no nosso modo de entender e se colocar na vida.

E em relação ao aperfeiçoamento profissional? Claro, aproveitar o tempo, pra quem tem tempo, para fazer muito curso, tanto no sentido de aprofundar mais áreas de conhecimento que já tem – tem muita coisa gratuita que pode ser aproveitada – como também se permitir visitar outras áreas, outros assuntos. Conteúdo é o que não falta. O difícil é até organizar, fazer uma curadoria disso. Então, é bom anotar na agenda… tem uma live importante, marca no celular para despertar naquele horário; enfim, também ter uma certa organização para aproveitar o máximo que puder.

Como você está vendo a situação no Brasil face a esta pandemia? Bom, o Brasil não tem nem o que falar, só chorar, lamentar, arrancar os cabelos e querer mudar para outro planeta… É tão impensável. A gente tem aqueles campeões do desgoverno atual: Trump (presidente dos Estados Unidos), óbvio; o Ortega, da Nicarágua; o Maduro, da Venezuela; e depois os malucos lá de fora também: o Duterte nas Filiplinas; aqueles doidos da Ásia Central, onde é proibido falar a palavra corona; o Putin (Rússia)… Quer dizer, a pandemia escancarou o que muitos de nós já sabíamos, e já considerávamos inaceitável, que é a desigualdade, a falta de educação formal mesmo, de alguma familiaridade com método científico e tudo isso porque as pessoas falam barbaridades para tentar defender o que não tem defesa. Então, é tudo muito triste. Pra mim, o principal é a preocupação com os mais vulneráveis, sempre.

Os informais, né... Todo mundo que vendia o almoço para comprar o jantar, nem sei como está sobrevivendo. O auxílio do governo teria que ter saído muito rápido, de uma forma muito organizada… Não é surpresa que isso não tenha acontecido neste momento que a gente vive, com este governo. Então, infelizmente, eles pagam um preço muito mais alto. Aquela coisa que tem sido muito comentada quando dizem: “Estamos todos no mesmo barco”. Não estamos nada. Eu, você, as pessoas de classe média, a gente está atravessando assim com perrengues, mas a maioria, no Brasil e no Planeta, está atravessando como uma questão de vida ou morte, seja de fome seja de corona.

O que exige nova visão, novas iniciativas… Aliás, o que eu adoraria ver é que a saída disso pudesse ser feita por meio da ciência voltada para a sustentabilidade, empregando os mais pobres. Quer dizer, o governo não só dando dinheiro, mas também empregando as pessoas em investimentos em sustentabilidade, preparando o País para ficar competitivo pra tudo isso que está vindo. Quer dizer, o corona é uma consequência de desequilíbrios ambientais. Ninguém duvida disso, ninguém discute, tirando os malucos. Então, vai possivelmente jogar uma luz e uma pressão para que todos os países que tenham alguma condição possam contribuir para alternativas de como conduzir a questão ambiental: busca de fontes de energia, repensar tudo, a agricultura, todo o modelo de exportação… Aliás, o que já está muito claro, exceto para burro, é que a floresta (amazônica) em pé é muito mais valiosa – e vai ficar cada vez mais valiosa quanto mais haja devastação em geral. Então, repensar o modelo econômico é uma coisa que eu adoraria ver acontecer. Claro, vou morrer querendo, provavelmente porque não vai ser agora, é evidente; neste governo anticiência que a gente tem não há chance. E vai ser mais uma oportunidade desperdiçada para o Brasil.

Até onde é possível, você consegue ver alguma luz no fim do túnel? O nosso grande Daniel Kahneman, no final de uma rápida entrevista no rádio, foi perguntado se ele tinha otimismo. E ele respondeu: “Claro, a Humanidade vai sair dessa, sempre saiu”. Então, não tem muita dúvida. Em algum momento, vai ter vacina… Mas, daí ele completou: “Mas para pessoas mais velhas como eu – ele deve estar na faixa dos 85 anos – não tenho nenhum otimismo”. Eu que tenho 20 anos menos também não vejo quando eu vou poder sair à rua normalmente. Nem com máscara. Eu estou entocada aqui, o que, é claro, é um peso… Nossa, tenho uma saudade, uma vontade de poder estar na natureza. É muito difícil, eu que sempre tenho algum contato, pelo menos mínimo, no Parque – e sempre que eu posso eu gosto de dar uma escapada -, é terrível passar tanto tempo fechada. Embora, de outro lado, eu não posso reclamar; do básico, eu tenho tudo o que eu preciso.

Mas a liberdade… Claro, a vontade de poder estar livre, poder ir para o campo, para a praia, para onde for, é muito grande. Mas acho que vai demorar anos para poder pensar nisso, porque, até a vacina ser finalmente descoberta e tornada acessível pra todo mundo, vai demorar muito tempo. O Brasil, do que eu li, ficou fora de um consórcio europeu… Então, vai demorar mais ainda. Alguém, acho que foi o Mia Couto, que é biólogo, falou esses dias, no Estadão (jornal O Estado de S. Paulo), que, num primeiro momento, a vacina vai ser acessível, mas que depois a ganância vem nos ciclos subsequentes – porque o vírus tem muita mutação, então sempre vai precisar de novas vacinas etc. E aí a gente não sabe como o País vai estar. Se estiver da mesma maneira que agora, socorro!, porque eles não tem noção do que estão fazendo. A gente está correndo um risco potencializado em muitas vezes.

Alguns especialistas tem discutido a implantação da renda mínima, algo que era tabu até pouco tempo; o que você acha da ideia em geral e no caso particular do Brasil? Viva o Suplicy (ex-senador paulista) que fala nisso há 500 anos. Sem dúvida, sem dúvida. Aliás, o mundo inteiro teria que adotar isso o mais rápido possível. É uma coisa que eu já dizia antes da pandemia. Em 2017, eu fui a um congresso na Paris School of Economics, que estava fazendo 10 anos e então fez este simpósio sobre desigualdade e pobreza. Inclusive, estava lá o Piketty (Thomas Piketty, economista francês, autor do livro O Capital no século XXI), que fala sobre a questão da desigualdade. Foi muito interessante. Eu lembro de um pesquisador francês que apresentou um trabalho – foi um dos trabalhos que eu mais gostei. Ele falou que em países muito pobres – nem é o caso do Brasil – eles tinham comprovado – acho que ele trabalhou no Banco Mundial – ficava mais barato pagar uma renda mínima universal – quando se tem mais de 95% da população paupérrima – do que tentar selecionar, tentar levantar critérios etc. porque, no meio desse caminho, tem tanta chance de corrupção e de injustiça – quem precisa não recebe, quem não precisa recebe. Então, você institui uma renda mínima universal para toda a população, claro alguns poucos recebem indevidamente.

Fazendo o cálculo sai mais barato... O que eu vinha já discutindo é o fato de que as pessoas que estão sendo jogadas de lado por conta da automação, desse desenvolvimento tecnológico todo - e agora, então, vai piorar muito com a pandemia porque o foco vai ser muito nisso: em desenvolver trabalho remoto, trabalho automatizado etc. etc. Então, essas pessoas teriam que receber uma renda mínima. E melhor se pudesse trocar isso… dentro daquela ideia que eu falei de trabalhar em investimentos sustentáveis, fazendo coisas que estejam dentro de sua capacitação porque é muito difícil você pegar milhões de pessoas de 40 a 60, 70 anos e ensinar alguma coisa complexa. Esse pessoal vai ter que ir, em grande parte, com a bagagem que já tem, com a experiencia que já tem. Então, você vai fazendo as duas coisas: essas pessoas são aproveitadas para fazer trabalhos mais de base e você vai capacitando os mais jovens…

E investimentos em educação… Óbvio, o ideal é todo o investimento do mundo em educação básica, primário, fundamental, para que, em algum momento, daqui a 15, 20 anos, a gente tivesse pessoas mais capacitadas, vindas das escolas públicas. Eu acho, aliás, que tudo teria que começar aí, na educação - e na educação básica. E, claro, comida, saneamento e casas. Agora, por exemplo, com a pandemia tem-se falado sobre condições de vida nas favelas, em lugares assim muito pobres, palafitas e tudo o mais. Ficou destacado o problema de mofo, de bolor nas paredes, e como isso afeta total.

E quem vai pagar tudo isso? Quem vai pagar isso são os países ricos, que enriqueceram também às custas de muita exploração e de destruição dos recursos naturais – eles tem que pagar uma taxa -, e também fazer uma reforma tributária… Pelo amor de Deus, qual é o sentido de uma pessoa que ganha muito pouco pagar o mesmo de imposto (Imposto de Renda) de alguém que ganha R$ 500 mil por mês? Sem contar que todo mundo já paga igual de ICMS, essas coisas todas. Então, claro que isso tem que ser repensado. Acho que, se a pandemia tiver algo de bom, é botar tudo isso na mesa outra vez.

Que saídas você imagina para o pós-pandemia? Eu tenho brincado que eu estou bem socrática: “Só sei que nada sei”. Fazer previsões, acho muito difícil. A única analogia que eu faço é com viajar de avião antes e depois do 11 de setembro (ataques terroristas contra o World Trade Center, em Nova York). Nunca mais voltou a ser normal. Ficou um perrengue para sempre e nunca mais vai voltar, eu acho. Então, é como se fosse aquilo que é pontual, bem localizado (em viagem aérea), ampliado pra tudo. Como vai ser ir ao bar, reunir com amigos num buteco? Que jeito vai ser escolas com quarentenas intermitentes? Eu acho que ainda não sabemos, em absoluto, que jeito vai ser. Como torcida do Flamengo, eu também estou com esperança em alguma vacina, mas a gente – quer dizer, os cientistas – sabe muito pouco sobre o vírus ainda: se tem a possibilidade de reinfecção; quanto tempo dura a imunidade; por que afeta tão gravemente algumas pessoas e não afeta quase nada outras…

 

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