Plágio de estilista norte-americana traz fama e negócios a blusa artesanal portuguesa

"Camisola Poveira", feita 100% de lã e à mão, tornou-se de repente famosa no cenário internacional.


Economia

José Venâncio de Resende0

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“A Camisola Poveira é uma peça de artesanato tradicional da Póvoa de Varzim com valor patrimonial, que remonta ao séc. XIX. É nossa missão vestir esta camisola e continuar a história dos poveiros.” Este apelo divulgado na página “Camisola Poveira” do Facebook traduz o impacto da polêmica envolvendo a estilista americana Tory Burch,  acusada de plagiar a tradicional camisola (blusa para nós brasileiros) do município de Póvoa de Varzim, no norte de Portugal.

Na sua coleção de Primavera SS21, anunciada em fevereiro, a estilista americana Tory Burch (mesmo nome da marca) lançou uma camisola de lã com suspeitas semelhanças à Camisola Poveira, peça de vestuário tradicional da Póvoa de Varzim. O preço anunciado foi de €695, mais de vinte vezes o valor da peça comprada na região (cerca de €30).

A peça da nova coleção seria inspirada na tradicional baja mexicana, mas Tory Burch negligenciou a flagrante semelhança com a camisola poveira, do desenho das figuras bordadas a detalhes como as mangas e a gola. Tanto que a marca de mesmo nome da estilista pediu desculpas pelo ocorrido.

100% artesanal

A polêmica despertou as lideranças locais para o potencial desta peça artesanal de valor histórico, que se tornou mundialmente famosa da noite para o dia. Em reunião no dia 6 de abril, a Câmara Municipal (equivalente a Prefeitura) aprovou as condições para a venda, nacional e internacional, da camisola poveira, produzida por artesãos locais e já disponível no Marketplace “É Bom Comprar Aqui!”. A blusa será vendida pelo preço máximo de €99 (até cerca de R$ 664).

Por esta iniciativa do município, cria-se uma plataforma que reúne, num só espaço e à distância de um simples clique, os artesãos que produzem a camisola poveira e os clientes que têm interesse em adquirir um modelo original. A receita das vendas são 100% revertidas para os artesãos responsáveis pela produção dos modelos vendidos.

Segundo o presidente da Câmara Municipal, Aires Pereira, “a promoção da compra da Camisola Poveira é uma ode à história e herança cultural do concelho da Póvoa de Varzim e, também, uma forma de valorizar e dignificar o trabalho meritório desenvolvido pelos nossos artesãos locais há mais de 150 anos”. Ele assegura que “a autarquia não tira qualquer vantagem comercial desta iniciativa, até porque só estabelece uma ponte entre aqueles que querem ter acesso a este artigo único e os que querem ter condições para poder produzir e exportar uma peça tão especial”.

Para garantir que a produção da camisola poveira se mantenha 100% artesanal e feita à mão, foram estabelecidos limites de compra e prazos longos de produção que acautelam o tempo médio de 50 horas por peça.

Além de limitar o preço máximo de venda e ajudar a vender a blusa, o município decidiu abrir, ainda este mês, curso de formação para pessoas interessadas em aprender a arte de fazer a camisola poveira, segundo informa o jornal Público (10/04). O treinamento, uma parceria entre a Câmara Municipal e o Instituto de Emprego e Formação Profissional, já conta com muitos interessados.

Mais sobre a blusa*

A camisola poveira bordada é feita em lã branca de fio grosso, da zona da Serra da Estrela, denominada “lã poveira” e decorada a ponto de cruz, com motivos de inspiração diversa (escudo nacional, com coroa real; patinhos; siglas; remos cruzados; vertedouros; etc), sendo somente utilizada lã de cor preta e vermelha nos bordados, segundo informações disponíveis no site da Câmara Municipal. “A camisola poveira era inicialmente (1ª metade do século XIX) feita em Azurara e Vila do Conde e bordada (ou marcada) na Póvoa pelos velhos pescadores. Em evolução, passou a ser bordada pelas mães, esposas e noivas dos pescadores, e depois feita e bordada na Póvoa”

Esta peça integrava o traje masculino de romaria e festa do pescador poveiro, cuja origem remonta ao primeiro quarteirão do século XIX. Este traje branco ou de branqueta (tecido manual) foi o que mais perdurou, mantendo-se até finais daquele século, sendo sempre o traje escolhido aquando da presença de elementos da comunidade junto das mais altas individualidades políticas. 

Com a grande tragédia marítima de 27 de fevereiro de 1892, o luto decretou a sentença de morte deste traje branco, assim como de outros. A camisola sobreviveu, ainda, pela primeira metade do séc. XX, mantendo-se como peça de luxo de velhos e novos.

A recuperação do vistoso e original traje branco deveu-se a António Santos Graça que, ao organizar o Grupo Folclórico Poveiro, em 1936, o ressuscitou e divulgou.

A beleza e o pormenor do trabalhado da camisola poveira não se resumem ao peito, embora seja a área objetivamente mais marcante. Também as mangas, o decote, as barras no punho, o remate junto ao ombro e na parte inferior são objeto de trabalhos com diferentes níveis de complexidade. A originalidade desta peça não está só nos motivos decorativos, mas também no seu modelo invulgar, tendo em conta o contexto do traje tradicional em que se enquadra. De mangas reglan, tem uma abertura à frente com um conjunto de pequenos torcidos que permitem abrir ou fechar o decote.

Esta peça sofreu naturalmente uma evolução ao longo do tempo. Inicialmente (séc. XIX) as camisolas eram mais simples, ficando a zona do bordado confinada praticamente ao peito. Com o correr do tempo, a valorização cultural do produto e a maior disponibilidade de tempo das artesãs, aumentaram significativamente o número de elementos bordados. Houve a integração de novos temas, chegando a ser comum bordar o nome do utilizador.

Paralelamente a este modelo de camisola bordada, do traje de luxo, as mulheres faziam e ainda fazem outro tipo de camisolas, de lã branca ou mesclada: a camisola poveira de pontos. Para a decoração destes modelos usam pontos em relevo como as tranças, os fachocos, etc.
A destreza neste tipo de trabalhos levou à diversificação de peças, daí surgindo os gorros, as luvas, as meias, os cachecóis, as carteiras… Bordados ou com pontos, estes artigos, para além da sua utilidade, entraram facilmente na moda pela sua beleza.

Atualmente, a versatilidade deste produto tem atraído criadores do mundo da moda, inspirados por tendências revivalistas e por temáticas de raiz mais popular. Em 2006, o estilista Nuno Gama, na sua coleção de camisolas de lã, utilizou motivos usados na nossa camisola, aplicados por bordadeiras poveiras, segundo as técnicas tradicionais.

* COSTA, Maria Glória Martins da – “O Traje Poveiro””, In: Póvoa de Varzim Boletim Cultural, vol. 19 (1980), p. 208-213

Sobre o município 

O município de Póvoa de Varzim, na região norte (área metropolitana do Porto), a meio caminho entre os rios Minho e Douro, tem população de cerca de 63,4 mil habitantes, de acordo com o Wikipedia. É vizinho dos concelhos de Vila do Conde e Esposende, com os quais forma um importante pólo urbano.

Cidade balneária por três séculos, Póvoa de Varzim é também reconhecida por uma cultura literária influente e pelo patrocínio da música e do teatro. É das poucas zonas de jogo legal em Portugal e ainda se destaca por possuir indústrias têxtil e alimentar significativas. 

Câmara Municipal de Póvoa de Varzim: https://www.cm-pvarzim.pt/

 

 

 

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