Pontevedra, a cidade espanhola onde vozes e pássaros substituem o barulho dos carros

Do porte de São João del-Rei, a cidade da Galiza expulsou o automóvel particular do centro histórico há mais de 20 anos.


Cidades

José Venâncio de Resende0

Pontevedra sem carros (fonte: blogspot.com)

Em setembro de 2019, um repórter do “The Guardian” visitou a cidade de Pontevedra (Galiza, Espanha) e, ao recebê-lo, o prefeito Miguel Anxo Fernández Lores abriu as janelas do escritório e disse: “Escute”. Só se ouviam vozes humanas e pássaros. (Antes) “O centro histórico estava morto”, disse ao jornal britânico. “Havia muitas drogas, estava cheio de carros, era uma zona marginal”.

Segundo “The Guardian”, as pessoas não gritam em Pontevedra - ou gritam menos. Também não há motores de aceleração ou buzinas, nenhum rosnado metálico de moto ou o rugido de pessoas tentando fazer-se ouvir acima do barulho. Isso ocorre porque, em 1999, a cidade fez do seu centro medieval - todos os 300 mil metros quadrados – um local de pedestres. Impediu carros de atravessar a cidade e se livrou do estacionamento na rua, pois as pessoas que procuravam um lugar para estacionar eram as que causavam mais congestionamento (vídeo BretheLife, 18/05/2020).

Há mais de 20 anos, automóvel não entra na cidade galega de Pontevedra, a menos que seja para serviços essenciais à comunidade. Em visita a Lisboa, em julho, Miguel Lores, desafiou a administração da capital portuguesa a fazer o mesmo. Ele participou de evento promovido pelos organizadores do “Portugal Mobi Summit 2020”, um laboratório de ideias que reúne empresários, pesquisadores e especialistas para repensar o futuro num mundo pós-pandemia.

É evidente que o desafio de Miguel Lores não é tão simples assim. Pontevedra (Galiza, Espanha) tem uma população de 83 mil habitantes, enquanto a população de Lisboa é estimada em pouco mais de 500 mil habitantes. Assim, o desafio seria mais adequado para a cidade histórica de São João del-Rei cuja população é equivalente à da cidade espanhola.

Foi uma mudança radical esta liderada por Miguel Anxo Lores, pois há 20 anos milhares de carros entravam e saiam de Pontevedra. “Mais carros passavam pela cidade num dia do que pessoas moravam aqui”.

Em 1999, o alcaiade (é assim que denominam prefeito na Espanha) foi um visionário, ao promover o início de grandes transformações amplamente discutidas no nosso tempo, especialmente em época de pandemia. Hoje, cerca de 72% das deslocações são feitas a pé ou de bicicleta e as crianças vão sozinhas para a escola.

A retirada dos veículos de circulação foi o ponto central da estratégia para reconquistar o espaço público e levar para a rua os residentes, especialmente crianças, idosos e a população com mobilidade reduzida, explicou Lores: Decidimos inverter a tendência. Colocamos as pessoas em primeiro lugar e o carro privado em último - atrás do pedestre, do ciclista, do motociclista, do transporte público e das cargas e descargas de mercadorias.

Logo no primeiro ano, os carros particulares foram expulsos do centro histórico e, no seu lugar, foram surgindo, nos anos seguintes, passeios e áreas de pedestres, trajetos escolares e algum estacionamento subterrâneo. As ruas foram calçadas com granito. Agora, consegue-se ir de um lado ao outro a pé em menos de 25 minutos, bicicletas andam nas ciclovias, pedestres estão por todo o lado, há carrinhos de bebê e crianças a brincar nas ruas.

A interdição alcançou quase todo o centro urbano, contou o prefeito: Cerca de 60% a 70% da área da cidade ficou destinada ao espaço público e cerca de 20%, 30% aos carros. Entre as medidas, os semáforos foram substituídos por por rotundas e a velocidade reduzida para 30 km/hora (há zonas com limites de 20 km/hora e de 10 km/hora).

Atualmente, apenas 28% das deslocações são feitos com veículos motorizados. Para facilitar a vida dos pedestres, a cidade também desenvolveu o Metrominuto: um mapa inspirado nas redes de metropolitano que mostra as rotas e o tempo que se demora para percorrer, bem como pontos de interesse ao longo do trajeto.

Uma das críticas ao prefeito é de que os carros foram empurrados para a periferia da cidade. Mas as transformações continuam com a expansão da atual área sem carros do centro medieval (300 mil metros quadrados) para 669 mil metros quadrados.

Pontevedra ganhou os holofotes internacionais: zero mortes no trânsito; redução de 66% nas emissões de CO2 (níveis de poluição abaixo do recomendado pela OMS); aumento do turismo e da receita comercial; 12 mil novos habitantes e maior número de crianças entre 0 e 14 anos devido à crescente procura por parte das famílias.

É um caso de sucesso que atrai o interesse de outras cidades e não para de ganhar prêmios de mobilidade urbana. Seu exemplo poderá ser seguido pelo governo da Espanha, que pretende impor zonas de restrição de veículos em cidades com mais de 50 mil habitantes até 2025 (138 cidades em todo o país).

Pandemia

Em seu sexto mandato (até 2023), Miguel Lores considera-se mais bem preparado para enfrentar a pandemia. Com o redesenho da mobilidade urbana, ele assegura que, em Pontevedra, é possível minimizar os impactos do confinamento e promover o distanciamento social de formas mais eficazes.

Outra vantagem é a cidade ser pequena, reconhece o prefeito, explicando que bastam 20, 25 minutos para percorrer Pontevedra de uma ponta à outra. Mas considera que o importante é reduzir ao mínimo a utilização do automóvel: Os carros dão-se mal na cidade e bem na autoestrada, temos de levá-los, por isso, para fora dos centros urbanos.

Miguel Lores reconhece que há resistências a ultrapassar, como a oposição política e o próprio medo da população em perder o privilégio de andar de carro por onde mais lhe convém. Quando restringimos a circulação automóvel, a maioria das pessoas usava o carro para andar 700 ou 300 metros.

Mas, agora, as crianças caminham sozinhas para a escola e “tem melhores notas”, conta o prefeito. Os pais, por outro lado, já não têm os “estresses matinais” com o trânsito: “O mais importante é que as pessoas já não tem medo dos carros”.

A vida ficou mais fácil até para os peregrinos dos Caminhos de Santiago de Compostela, que na medida em que se volte à normalidade poderão visitar a Basílica de Santa María, as Ruínas de Santo Domingo, a Capela da Virgem Peregrina ou a Igreja de San Bartolomeu.

Fontes:

https://www.jn.pt/economia/miguel-anxo-lores-as-pessoas-em-pontevedra-ja-nao-tem-medo-dos-carros-12454967.html

https://nit.pt/fora-de-casa/na-cidade/viver-numa-cidade-sem-carros-espanha-fez-o-teste-e-o-sucesso-e-enorme

https://breathelife2030.org/pt/news/pontevedras-car-free-decision-still-reaps-liveability-benefits-two-decades/

 

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