As ruínas da antiga Fazenda da Boa Vista, de final do século XVIII, escondidas em meio a uma mata não muito densa, estão ameaçadas de extinção. A mata “tem preservado o conjunto, evitando o seu completo desaparecimento pela ação humana, como se deu com os vestígios de outras fazendas escravistas do nosso município”, diz o professor e historiador João Carlos Resende, que teve conhecimento dessas ruínas em 2012. Mas a mesma natureza que guardou esse tesouro hoje o ameaça: “Árvores têm crescido sobre as pedras e o desmoronamento de algumas estruturas parece inevitável em um futuro não muito distante, caso não sejam tomadas medidas de preservação”.
Em 2014, João Carlos, que era membro do Conselho Municipal de Patrimônio, alertou sobre a existência das ruínas, “na esperança de que alguma medida fosse tomada para a preservação desse bem de valor histórico incomensurável”. Não é preciso ser um arqueólogo ou um historiador especializado em cultura material para “inferir que no local se encontram a base do sobrado (alicerce), os currais, a parede em que era encaixado o eixo da roda d’agua do engenho e a belíssima base onde a água era lançada sobre a mesma roda”, observa. Além disso, “há grande quantidade de muros de pedra que formavam os currais e as divisas de pastos, que se estendem, talvez por quilômetros, nos terrenos circunvizinhos, muito provavelmente fruto do trabalho escravo”.
Porém, alerta João Carlos, apenas o laudo de um especialista pode identificar outras estruturas menores ali existentes, que disputam espaço com a natureza e sofrem a desfiguração devido ao processo de demolição há décadas. “Esse conjunto, além de possuir um carregado significado afetivo para os inúmeros descendentes da família que ali viveram, ainda é uma importante fonte de estudos sobre a sociedade mineira oitocentista.” Na região desse “sítio arqueológico”, ainda vivem diversos descendentes dos antigos proprietários, ligados às famílias Resende e Ribeiro da Silva.
Preciosidade
As ruínas da antiga Fazenda da Boa Vista, que “são uma preciosidade” e que “lançam luz sobre importantes lacunas da história regional e local”, “seriam um excelente laboratório para ensinar aos estudantes as dinâmicas da vida colonial e a forma como essas dinâmicas eram vivenciadas aqui, tão perto deles”, observa Flávia Cristina da Silva, professora de História e membro do Conselho Municipal de Patrimônio. “O estudo dessas ruínas pode proporcionar conhecimentos sobre as atividades econômicas que foram desenvolvidas ali, sobre as relações de trabalho, as técnicas de produção, sobre os hábitos de morar e viver... Muito da história de Resende Costa está nessas áreas rurais, para onde historiadores, arqueólogos e a comunidade devem voltar seus olhares e cuidados.”
Trata-se de um patrimônio “muito significativo” na zona rural do município, “seja na forma de fazendas edificadas ou de ruínas”, mas que está em sério risco de se tornar “apenas uma fotografia na parede”, alerta Adriano Valério Resende, professor de geografia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG) e membro do Instituto Rio Santo Antônio (IRIS). A menos que haja “o apoio efetivo das entidades municipais que lidam diretamente com a questão”.
Segundo Adriano, “uma das únicas formas de manter esse patrimônio vivo para as próximas gerações é institucionalizar a preservação; ou seja, a Secretaria Municipal de Cultura e o Conselho Municipal de Patrimônio precisam internalizar essa ideia, apoiar a criação de uma legislação específica para o tema e desenvolver ações que visem à conscientização dos proprietários e à preservação física dos bens”.
Flávia considera “de extrema importância para Resende Costa que houvesse um mapeamento das principais propriedades rurais que deram origem ao município e a elaboração de políticas públicas que garantam a sua preservação. Acredito que o Conselho de Patrimônio pode contribuir muito para que isso aconteça, mas são necessários esforços coletivos. Divulgar a existência dessas ruínas e insistir na sua valorização é muito importante para que a comunidade entenda que essas histórias e memórias também pertencem a ela como patrimônio que compõe a sua identidade”.
A história da Fazenda da Boa Vista
O primeiro registro da Fazenda da Boa Vista de que João Carlos tem conhecimento é de 1823. Mas “é possível que a propriedade tenha sido formada por ocasião do casamento do guarda-mor Bartolomeu de Souza Soares e de Bernarda de Proença (de Góes) e Lara, em 1793”. Bernarda era filha de Francisco Pinto Rodrigues e Ana Maria Bernardes. A cerimônia ocorreu aos 13/01/1793, na “Ermida da Fazenda Ribeirão”.
A sede da Fazenda Ribeirão de Santo Antônio, propriedade de Francisco, erguia-se nas proximidades da capela do Povoado dos Pintos, por sua vez construída algumas décadas após o desaparecimento da sede setecentista. O fato de Bartolomeu ter se casado com uma filha do proprietário “parece um indício para sustentar que essa Fazenda da Boa Vista é a mesma que existiu no lugar hoje chamado Boa Vista, ao lado da rodovia ainda não pavimentada que liga Resende Costa e São Tiago”, prossegue João Carlos. Por outro lado, o casamento, em 1817, de uma das filhas do casal, Florisbela Amada de Jesus, na ermida de seus avós maternos, a Fazenda Ribeirão de Santo Antônio, “pode indicar que até aquele momento ainda não havia sido edificada a Fazenda da Boa Vista”.
Além do mais, os registros de sesmarias, em 1797, de Joaquim Pinto de Góes e Lara para a sua Fazenda Ribeirão de Santo Antônio (havia o costume de primeiro edificar a fazenda e só algum tempo depois requerer a sesmaria) e, em 1798, de Genoveva de Lara para a sua Fazenda Rio do Peixe, não fazem referência à Fazenda da Boa Vista ou a seus proprietários como confrontantes, ao contrário, por exemplo, do que ocorre com a Fazenda do Catimbau no primeiro caso. “Nos seus primeiros anos, a Fazenda da Boa Vista devia fazer divisa, ao menos em parte, com as duas propriedades cujas sesmarias foram mencionadas”, observa João Carlos.
O fato é que, aos 29/09/1823, Mecias Perpétua do Amor Divino casou-se com o Tenente Manoel Pereira dos Santos Viana na “Ermida Nossa Senhora da Conceição da Boa Vista, do guarda-mor Bartolomeu de Souza Soares”. No inventário de Bartolomeu, aberto aos 17/06/1823, a viúva Bernarda declarou que ele faleceu aos 07/05/1823. A sede da fazenda era assim descrita: “uma Fazenda denominada Boa Vista, com casas de vivenda cobertas de telha, com ermida, engenho de cana e de farinha, moinho, senzalas e paiol, tudo coberto de telhas e quintais com muros de pedra, terras de plantas e campos”. Já o inventário de Bernarda, em 1841, foi aberto em São Gonçalo de Ibituruna, o que leva a crer que naquele momento a Fazenda da Boa Vista já não era propriedade da família.
Entre 7 e 8 de maio de 1823, o militar Raimundo José da Cunha Matos, que se dirigia do Rio de Janeiro para Goiás a fim de assumir o governo dessa província, pernoitou na Fazenda Ribeirão de Santo Antônio, no Arraial da Lage. A caminho do arraial de São João Batista, atual distrito de Morro do Ferro, em Oliveira, escreveu em seu diário: “Às 7 horas e ¼ ficava-me à direita, fora da estrada, uma grande casa, e um vasto canavial de açúcar, à esquerda”. A julgar pelos outros locais e horários mencionados, é bastante provável que o militar estivesse se referindo à Fazenda da Boa Vista, observa João Carlos. “A presença da plantação de cana e sua caracterização indicam que naquele momento a produção açucareira devia ser intensa”.
Ribeiro da Silva
Ainda não se sabe quando a fazenda saiu das mãos da família de Bartolomeu e Bernarda, segundo João Carlos. “Em 1856, contudo, ao fazer a relação das propriedades rurais do distrito da Lage, o padre Joaquim Carlos de Rezende Alvim, então vigário da paróquia, escreveu que “O Guarda Mor Antônio Ribeiro da Silva, que mora na Freguesia de Santa Rita, possui na Freguesia da Lage a Fazenda da Boa Vista, que tem de campos 187 alqueires, e capoeiras 93 mais ou menos, que a houve por compra.”
A declaração dos bens de Antônio foi feita por seu filho, Luiz Ribeiro da Silva, casado com Esmênia Maria de Almeida aos 05/11/1845. “Talvez a compra da propriedade tenha sido feita por ocasião desse enlace matrimonial”, observa o historiador. Esmênia era filha de Felisberto Pinto de Almeida (ou de Góes e Lara), que faleceu em 1843, “e a compra da fazenda pode ter sido facilitada com os bens adquiridos por herança”.
A Fazenda Boa Vista era a quinta maior, com 427 alqueires em 1889, entre as 16 propriedades com mais de 200 alqueires (1 alqueire equivalia a 2,42 hectares, segundo pesquisa de Francisco Eduardo Pinto no entorno de São João del-Rei), de acordo com pesquisa de João Carlos, para a obtenção do grau de mestre em História, a partir da consulta de 150 inventários realizados no antigo distrito da Lage entre 1871 e 1912.
No período da Primeira República (1889-1930), a propriedade foi mencionada em três inventários, constata João Carlos. Em 1889, por ocasião da morte de Luiz Ribeiro da Silva, foi arrolada “uma morada de casas com moinhos e mais benfeitorias no terreiro, com dois quintais nesta Fazenda da Boa Vista” e, ainda, “a casa do engenho com seus pertences”. Dez anos depois, em 1899, o inventário de Esmênia Maria de Almeida limita-se a citar as “benfeitorias da Fazenda Boa Vista”. Esmênia era proprietária de apenas parte da casa, pela divisão entre os herdeiros.
Após a morte de Esmênia, o genro Gervásio Firmino dos Reis “deve ter adquirido a maior parte da sede e dos terrenos circunvizinhos”, observa João Carlos. Seu inventário, de 1919, oferece a melhor descrição da casa e benfeitorias. Primeiro, faz menção a “um moinho no quintal da sede da Fazenda da Boa Vista”. Em seguida, relaciona“um engenho de cilindro, movido à água, em mau estado, com quatro tachas, um alambique, formas para açúcar e mais pertences, em comum com o senhor Luiz Ribeiro da Silva” (filho de Luiz Ribeiro da Silva, finado em 1899). Por fim, menciona “a casa da sede da Fazenda da Boa Vista, coberta de telhas, curral e respectivos quintais [...] em comum com o senhor Fortunato Pedro de Oliveira (casado com Maria Constança de Resende, filha de Luiz Ribeiro da Silva) e José Antônio de Morais (casado com Maria do Carmo de Resende, outra filha de Luiz Ribeiro da Silva)”.
O inventário, de 1932, de Esmênia Maria de Resende, filha de Luiz Ribeiro da Silva e então casada com Gervásio, apresenta a ordem dada pelo juiz, para que os avaliadores “façam na fazenda denominada ‘Boa Vista’” a relação dos bens da falecida. Entre as posses da antiga propriedade, além dos móveis, são mencionados “vinte e dois alqueires de campos e culturas na fazenda denominada ‘Boa Vista’”, número muito distante dos mais de quatrocentos alqueires pertencentes a Luiz, pai de Esmênia, “o que deve ser compreendido pelas sucessivas partilhas entre os herdeiros (Luiz e Gervásio tiveram 14 filhos cada), observa João Carlos. “A sede da propriedade sequer é mencionada nesse momento.”
Demolição
Após a morte de Gervásio e Esmênia, a fazenda pertenceu a um dos filhos do casal, José Firmino de Resende, conhecido como Zeca da Boa Vista, segundo seu filho Orestes Resende, o Orestes Seleiro (já falecido). O depoimento de Orestes a este jornalista* é confirmado por relatos, a João Carlos, de descendentes dos antigos proprietários, que cresceram em sítios menores formados após a partilha das terras, sucessivamente, assim como de trabalhadores que ali tiraram seu sustento.
Durante a infância e a adolescência de Orestes Seleiro, o engenho ainda funcionava e foi utilizado até cerca da metade do século XX, embora em decadência. Segundo os relatos, a água necessária para o seu funcionamento era conduzida até ele por um longo canal que chegava a atravessar um outro córrego por meio de um bicame de madeira (espécie de pequeno aqueduto) até novamente encontrar o solo. Ao lado do engenho, havia um moinho que, além de beneficiar o milho para a obtenção de fubá, podia ter sua roda conectada a um ralo com o qual era ralada a mandioca para a produção de polvilho.
O casarão da Boa Vista foi demolido, entre o final da década de 1940 e os anos 1950, por Zeca e seus descendentes, de acordo com depoimentos de Orestes Seleiro e de Atair Socorro (neto de Zeca).
Até o fechamento desta edição do JL, não foi possível localizar o atual dono da Fazenda da Boa Vista. Mas a reportagem está à disposição para qualquer manifestação tão logo ele ache oportuno.
*Filho de Orestes, neto de Zeca da Boa Vista
Desativado - 14/02/2023
Boa madrugada essa fazenda pertencia a Luiz Ribeiro da Silva, descendente do meu avô Romualdo Gomes de Moraes Gostaria de conhecer Tel:(31)99869-8997 Aguardo contato Em nome do senhor Jesus Cristo amém...