Volume II de “Escravidão” confirma aceitação do 1º livro de Laurentino Gomes


Entrevistas

José Venâncio de Resende0

fotoEm três semanas, Escravidão (II), de Laurentino Gomes, saltou para o topo dos livros mais vendidos (foto cedida pelo autor).

A comarca do Rio das Mortes (com sede na antiga Vila de São João del-Rei) aparece nos capítulos iniciais do livro Escravidão (volume II, Globo Livros), em que Laurentino Gomes descreve o impacto da descoberta de minerais preciosos em Minas Gerais no início do século XVIII. “Uma onda de fome, violência e criminalidade assolou o interior do Brasil, especialmente de Minas Gerais nessa época. Milhares de pessoas abandonaram suas casas, terras e famílias e partiram em busca de riqueza fácil nas novas áreas de mineração.” O autor trata, ainda, da chamada Guerra dos Emboabas, série de conflitos entre paulistas e forasteiros pelo controle das áreas produtoras de minério.

Nesta entrevista ao JL, Gomes fala também da aceitação do primeiro volume (que já vendeu cerca de 300 mil exemplares) e da repercussão do volume II da trilogia: “Na revista Veja, os dois volumes aparecem juntos entre os dez primeiros lugares da lista”. O autor revela a estratégia de divulgação do livro nas redes sociais por meio da publicação de pequenos vídeos e fotos com os bastidores de suas viagens de pesquisas: “Eu uso as redes sociais para compartilhar com os leitores algumas experiências adicionais do meu trabalho, que nem sempre pude colocar no livro”.

Por fim, Gomes comenta o lançamento em Portugal de um “único livro”, reunindo o primeiro volume e um capítulo do segundo: “Entre nós, o legado da escravidão é ainda um nervo exposto que, ao ser tocado, dói. (…) Em Portugal também se discute tudo isso, mas o olhar tende a ser mais de um ponto de vista histórico, de um ajuste de contas com o passado”. E faz uma revelação sobre o terceiro e último livro da trilogia, a ser lançado em 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil: “terá como foco principal o movimento abolicionista, o tráfico ilegal de cativos, o fim (pelo menos do ponto de vista formal e legal) da escravidão no século XIX e o seu legado atualmente”.  

Qual é o balanço que você faz do primeiro volume, em termos de aceitação, públicos, vendas etc.?

Ao iniciar a pesquisa, oito anos atrás, eu tinha preocupações a respeito de como o público brasileiro e português reagiria a um tema tão difícil e delicado quanto a história da escravidão. Felizmente, nenhum dos meus temores se concretizou. A repercussão do primeiro volume foi maior e melhor do que eu imaginava. O livro permaneceu várias semanas na lista dos mais vendidos e ganhou diversos prêmios importantes, incluindo o Jabuti de Literatura. Até agora, em menos de um ano desde o lançamento, já vendeu cerca de 300 mil exemplares. Tudo isso reforça em mim a convicção de que a obra chegou em boa hora. As discussões a respeito da herança da escravidão, o que inclui a desigualdade social e o racismo, têm sido muito intensas. Fico feliz em contribuir para que as pessoas reflitam sobre o assunto.

Como tem sido a repercussão da divulgação do segundo volume?

Tem sido a melhor possível. Em três semanas, o livro já saltou para a primeira posição entre as obras mais vendidas da semana, pelo ranking do site PublishNews. Na revista Veja, os dois volumes aparecem juntos entre os dez primeiros lugares da lista. O número de novos seguidores nas redes sociais também aumentou muito desde que comecei, em meados de abril, a divulgar uma série de pequenos vídeos com os bastidores de minhas viagens de pesquisas. Eu uso as redes sociais para compartilhar com os leitores algumas experiências adicionais do meu trabalho, que nem sempre pude colocar no livro. Ao longo de seis anos, li quase duas centenas de livros, viajei por doze países em três continentes, visitando museus, bibliotecas, rotas e fortificações utilizadas pelo tráfico negreiro tanto na África quanto na América. Estive em Liverpool, na Inglaterra, que era o grande centro fornecedor de mercadorias, capitais e embarcações para o comércio de gente. Fui a Lagos, no sul de Portugal, onde ocorreu o primeiro leilão de cativos africanos registrado na história, na manhã do dia 8 de agosto de 1444, diante do Infante Dom Henrique, o Navegador. Reuni milhares de dados e informações e seria impossível descrever tudo isso numa trilogia de livros, por mais volumosa que fosse a obra. Então, ao longo da jornada, decidi fazer uma série de vídeos e fotos que agora estou publicando nas redes sociais. É como se fosse um livro paralelo, em formato digital, que ninguém vai ler no papel. Mas acho também que ajuda a chamar a atenção das pessoas para a importância do tema. É, portanto, um jeito diferente e inovador de lançar livros no Brasil.

No segundo volume, você aborda o papel da comarca do Rio das Mortes (instituída em 1714 com sede na vila de São João del-Rei), uma das três primeiras da capitania de Minas Gerais, no ciclo do ouro e na expansão da escravidão no Brasil?

A comarca do Rio das Mortes aparece nos capítulos iniciais do livro, em que descrevo o impacto da descoberta de minerais preciosos em Minas Gerais no início do século XVIII. Uma onda de fome, violência e criminalidade assolou o interior do Brasil, especialmente de Minas Gerais nessa época. Milhares de pessoas abandonaram suas casas, terras e famílias e partiram em busca de riqueza fácil nas novas áreas de mineração. Nos decadentes centros produtores de açúcar, senhores de engenhos falidos mudaram-se para “as minas” com toda a sua escravaria, movidos pelo sonho de refazer rapidamente a fortuna. Os precários caminhos coloniais ficaram congestionados de homens e mulheres, jovens e idosos, brancos, negros e mestiços, nobres e plebeus, incluindo religiosos de diversas ordens. Entre outros temas, trato da chamada Guerra dos Emboabas, série de conflitos entre paulistas e forasteiros pelo controle das áreas produtoras de minério. Antes da corrida do ouro, essa era região de atuação de Borba, o bandeirante paulista famoso pelas investidas contra os índios nos sertões brasileiros, com o objetivo de escravizá-los, e por uma vida misteriosa, em que se misturavam crimes, contrabando e muita truculência. Acusado de matar Dom Rodrigo de Castelo, fidalgo português administrador-geral das Minas, em 28 de agosto de 1682, Borta Gato se acobertou com seu bando na região do Rio das Velhas. Nas vizinhanças do refúgio estava localizada a Serra de Sabarabuçu, atualmente no município de Sabará, a 23 quilômetros de Belo Horizonte, de onde brotariam as primeiras pepitas de ouro. Hoje acredita-se que, por mais de uma década, Borba Gato tenha mantido segredo da descoberta, para não atrair a cobiça de concorrentes, os cobradores de impostos da coroa portuguesa e, em especial, obter perdão real para o crime que havia cometido. Foi, de fato, o que aconteceu.

Você poderia falar um pouco mais de figuras públicas da região de origem escrava, que se destacaram na sociedade mineira, como o casal Alexandre Correia e Maria Correia de Andrade que viveu em São João del-Rei?

Conto a história de Alexandre Correia e Maria Correia de Andrade em um capítulo sobre a família escrava neste segundo volume da trilogia. É um caso fascinante, bem estudado pelo historiador mineiro Eduardo França Paiva. Mostra como, no curso de uma única geração, um homem e uma mulher, recém-chegados da África como cativos, tiveram a oportunidade de ganhar a liberdade, constituir família, acumular bens avaliados no total em dois contos de réis, o que seria uma fortuna razoável para a época, equivalente a 5,5 quilos de ouro, cerca de 865 mil reais em valores atualizados de 2019, além de virar, eles próprios, donos de escravos. Quando Alexandre e Maria contraíram matrimônio, a noiva já era mãe de um filho e uma filha. Depois do casamento, nasceram mais cinco filhos. A liberdade de ambos, aparentemente, foi obtida na mineração de ouro. Os bens de raiz, declarados pelo chefe do clã em seu testamento, de 1761, incluíam lotes de extração de ouro, diversos instrumentos de mineração e agricultura e, por fim, doze escravos.

Os inconfidentes, muitos deles da região de São João del-Rei, eram proprietários de escravos, inclusive Tiradentes; você acredita que se a Inconfidência Mineira tivesse sido bem-sucedida, a abolição da escravidão poderia ter acontecido antes de 1889, considerando a influência dos Estados Unidos nos ideais dos inconfidentes?

Acho pouco provável. Os Estados Unidos só aboliram a escravidão ao final de uma sangrenta guerra civil, que matou cerca de 750 mil pessoas. Além disso, nada garante que a Inconfidência Mineira de fato tivesse interesse em acabar com a escravidão. No meu livro, eu cito o dilema dos inconfidentes diante do tema. Há uma contradição nos grandes movimentos libertários do século XVIII. A Independência Americana, a Revolução Francesa e a Inconfidência Mineira, entre outras rupturas, tinham um traço em comum: eram todas transformações brancas, que deixavam à margem a população negra e escravizada, a esta altura calculada em milhões de seres humanos em todo o continente americano. Os documentos, manifestos e discursos falavam em liberdade, direitos para todos, participação popular nas decisões, mas seus autores conviviam naturalmente com a escravidão, como se a defesa dessas ideias não dissesse respeito aos negros. O próprio Tiradentes, no ano de sua morte, era dono de seis escravos.

Você chegou a abordar no seu livro a Revolta de Carrancas, rebelião de escravos que eclodiu nas propriedades da família Junqueira, em 13 de maio de 1833?

Pretendo tratar da Revolta de Carrancas no terceiro volume do trilogia, a ser lançado em 2022. O caso teve enorme repercussão na época. Dezenas de escravos se rebelaram na freguesia de Carrancas, comarca do Rio de Mortes, região que na época tinha uma das maiores concentrações de cativos de toda a província de Minas Gerais. A cada dez habitantes, seis eram escravos, dos quais 56% tinham nascido na África. Eram, portanto, pretos novos, recém-chegados ao Brasil. No levante, iniciado na fazenda do deputado Gabriel Francisco Junqueira, futuro barão de Alfenas, foram massacrados nove membros de sua família, incluindo o pai, a mãe e um filho do parlamentar e dois netos, um menino de cinco anos e uma bebê recém-nascida de apenas dois meses. Na repressão que se seguiu, cinco revoltosos foram mortos pelas forças policiais. Outros doze seriam enforcados na praça pública de São João del-Rei.

Gostaria que você falasse um pouco sobre as “Áfricas brasileiras”, em Minas Gerais, onde é muito marcante a expressão cultural, mas também são muito fortes o racismo e a desigualdade social. 

A beleza, o racismo e a desigualdade social são parte dessas muitas Áfricas brasileiras que encontrei em Minas Gerais. Fiquei particularmente impressionado ao visitar a Igreja de Santa Efigênia de Ouro Preto, construída por negros escravizados, e observar, com a ajuda de um guia muito experiente, os sinais e códigos de origem africana escondidos ou cifrados em meio às esculturas e desenhos em alto relevo dos altares. Quem tiver um olhar atento, poderá observar lá, por exemplo, a simbologia de alguns orixás africanos, como o véu de Iansã, as conchas marinhas de Iemanjá e o casco de tartaruga de Xangô. Isso muda totalmente a compreensão que se tem do barroco mineiro, muitas vezes interpretado apenas como mera transposição de um estilo arquitetônico português para o Brasil. O barroco mineiro carrega contribuições negras e africanas fundamentais. Talvez o mais correto seria chamá-lo de barroco afro-mineiro, ou afro-brasileiro.

Como está o lançamento do livro em Portugal?

O primeiro volume de Escravidão foi lançado em Portugal na última semana de junho, pela Porto Editora. Ao contrário do Brasil, decidimos não divulgar como sendo parte de uma trilogia. É um livro único, contando basicamente a história do primeiro volume brasileiro, mais a inclusão de um capítulo do segundo volume. A repercussão tem sido boa. O assunto tem se tornado importante em Portugal, como de resto em todo o mundo. Mas existem visões diferentes nos dois lados do Atlântico. Entre nós, o legado da escravidão é ainda um nervo exposto que, ao ser tocado, dói. O racismo é um tema presente em nosso cotidiano, polêmico, delicado e politicamente sensível. Neste início de século XXI, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestações diárias de preconceito racial. Em Portugal também se discute tudo isso, mas o olhar tende a ser mais de um ponto de visto histórico, de um ajuste de contas com o passado, do que propriamente do enfrentamento de passivos sociais mal resolvidos. Curiosamente, isso se reflete no tratamento gráfico da capa dos meus livros nas edições brasileira e portuguesa. No Brasil, três cores se alternam nas capas da trilogia: preta, vermelha e branca. São todas muito simbólicas da experiência da escravidão entre nós. E essa é mesmo uma dor mais brasileira do que portuguesa. Em Portugal, a capa do livro tem cores mais suaves, na tonalidade marrom e magenta, que lembra um mapa ou um documento antigo. Portanto, remete mais ao aspecto histórico do assunto do que a uma ferida social ainda a ser tratada e cicatrizada.

Qual será o foco do terceiro volume? Já há previsão de lançamento no Brasil?

O terceiro e último livro da trilogia, a ser lançado em 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil, terá como foco principal o movimento abolicionista, o tráfico ilegal de cativos, o fim (pelo menos do ponto de vista formal e legal) da escravidão no século XIX e o seu legado atualmente. Pretendo mostrar como o pacto entre a aristocracia escravista e o trono brasileiro impediram que o Brasil resolvesse o problema do tráfico negreiro e da própria escravidão ainda na época da Independência, como defendia José Bonifácio de Andrada e Silva. O Brasil foi o último país da América a acabar com o tráfico, pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850, e o último a abolir a própria escravidão, pela Lei Áurea de Treze de Maio de 1888. Mas não enfrentou nem resolveu o legado da escravidão, contrariando o que defendiam os nossos grandes abolicionistas no século XIX. Há um projeto de Brasil que ficou abortado ou interrompido naquela época. E isso explica muitos dos nossos problemas atuais.

 

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