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Bela, sempre bela língua portuguesa

15 de Marco de 2009, por Regina Coelho

Falei sobre a língua portuguesa na edição de janeiro deste ano. Mencionei nomes de alguns dos nossos muitos autores através de quem foram escritas belas e inesquecíveis palavras. São inúmeras páginas reveladoras do pensamento e do sentimento do artista de alma lusitana. Por gosto pessoal e considerando momentos distintos da história, selecionei algumas delas. Aprecie!

SONETO
Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(Luís de Camões)


HAVEMOS DE VOLTAR
Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar.

Às nossas terras
vermelhas do café
brancas do algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar.

Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar.

Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar.

À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar.

À marimba e ao quissange
Ao nosso carnaval
havemos de voltar.

À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar.

Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente.
(Agostinho Neto, Cadeia do Aljube, outubro de 1960)


MOMENTO NUM CAFÉ
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
(Manuel Bandeira)


FUMO
Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...
(Florbela Espanca)


A letra A a
Funda no A
tlântico
e pacífico com
templo a luta
entre a rápida letra
e o oceano
lento

assim
fundo e me afundo
de todos os náufragos
náufrago
o náufrago
mais
profundo.
(Paulo Leminski) – Sugestão de Eni Penha


ISMÁLIA
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir no céu,
Queria descer no mar...

E no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
(Alphonsus de Guimaraens)

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