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A fala como marca de identidade

16 de Abril de 2019, por Regina Coelho

Em seu texto de apresentação do livro O que é isso, companheiro? (1979), do jornalista Fernando Gabeira, Ziraldo faz uma revelação interessante sobre o autor. “Tão bem ele usava as palavras de sua língua e tanto impressionava seus colegas de jornal (Jornal do Brasil), (...) que foi este detalhe a primeira coisa que o denunciou quando o embaixador dos Estados Unidos foi sequestrado para a libertação dos primeiros prisioneiros da guerrilha urbana brasileira. O bilhete do resgate estava tão bem escrito, tão tecnicamente bem escrito que os colegas de Gabeira – que havia abandonado o emprego de Chefe de Departamento de Pesquisa do jornal para cair na clandestinidade – não tiveram dúvida: Gabeira está nessa! E não deu outra.”, relata Ziraldo.

Assim é. Podemos ser identificados por inúmeras marcas pessoais, entre elas, pelo nosso estilo linguístico, aqui entendido pelo jeito único que cada um tem de falar e escrever. Essa particularidade é principalmente explorada por muitos profissionais da comunicação. Como apresentador do Mesa Redonda, programa de debates da TV Gazeta de São Paulo, Roberto Avallone, que faleceu recentemente, ao fazer uma pergunta, sempre dizia “interrogação” no fim da frase. E se afirmava algo, “exclamação”. Dependendo da empolgação, dizia “vírgula” ou “ponto”. Isso me faz lembrar o hábito de muitos do desenho com os dedos médio e indicador de cada mão imitando as aspas que cercam certas falas.

Não por acaso, no processo de composição de personagens em novelas, programas de humor e propagandas, especialmente, os responsáveis por dar vida a essas criaturas da ficção dão também a elas determinados bordões, as tais frases proferidas exaustivamente para colar na imagem e nas ideias de quem fala. A intenção é essa. E quando um bordão emplaca, ganha a boca do povo, muitas vezes resistindo ao tempo. Prova disso é o “Tô certo ou tô errado?” do inesquecível Sinhozinho Malta (Lima Duarte), em Roque Santeiro (1985), TV Globo, novela de Dias Gomes. Na contextualização da frase, em tom intimidatório, querendo ter sempre razão, a personagem balança pulseira e relógio de ouro no braço, chacoalhando-os como uma cascavel. Mais recente (2004-2015) é o “Isso não te pertence mais”, de Fabiana Karla, intérprete de Dona Gislaine, uma divertida personal trainer de novos-pobres no Zorra Total, TV Globo, hoje reformulado no título (apenas Zorra) e na proposta (mais cult e foco no cotidiano). Para completar a trinca de bordões populares, não poderia faltar o “Não é assim uma Brastemp” (1991), texto usado ainda hoje como justificativa na comparação de algum produto tido como inferior porque não é uma “Brastemp”, ou seja, um artigo com a qualidade dessa marca, subentendida como superior em relação às demais.

Com olhos e ouvidos atentos e treinados pela profissão de muitos anos, vivo interessada nas palavras, em especial, nas expressões da vida real compartilhadas por tanta gente, ao mesmo tempo personalizadas em vocabulário próprio adotado naturalmente. Dessa forma, nós nos pegamos falando como nossos pais falariam e absorvemos o que vem da rua, da tevê, das redes sociais, dos livros... Daí surge o estilo linguístico de cada um. Com bordões, inclusive, que isso não é só coisa de artista.

A gravação de uma voz anunciando pelas ruas de Resende Costa o “abacaxi doce, doce como mel” e o grito de “ó gás ás ás!!!” ecoando pelo centro da vizinha São João são boas formas de identificação desses produtos e de seus respectivos vendedores. Mas marcante mesmo foi ouvir por muito tempo a voz sorridente de uma certa senhora quando chegava em nossa casa carregando um balaio com sua produção artesanal de sabão de bola, que vendia para as freguesas, minha mãe, uma delas. Feito com cinza curtida (cujo líquido virava a dicoada) e sebo de vaca cozido, cada um deles vinha embrulhado na palha. Da escada mesmo, ao anunciar sua presença, D. Maria da Luz Vieira dizia: “D. Olga, ó o sabão, bem!”, todas as vezes exatamente assim, cativante e estilosa.

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