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Inocência perdida

18 de Maio de 2022, por Regina Coelho

Segunda Guerra Mundial, Itália. Guido Orefice, judeu dono de uma singela livraria judaica, e o filho Giosué, de pouco mais de 4 anos, são levados a um campo de concentração em Berlim. Afastado da mulher, tem que usar a imaginação para fazer o menino acreditar que os dois estão participando de uma brincadeira, com o intuito de protegê-lo do terror e da violência que os cercam. Essa é a sinopse de “A vida é bela” (La vita è bella), aclamado e premiado filme italiano dirigido e estrelado por Roberto Benigni, e ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1998.

12 de junho de 1942. Ao completar 13 anos, a alemã filha de judeus Anne ganhou um diário e no mesmo dia começou a escrever nele sobre o seu cotidiano. Vivendo na Holanda, para onde sua família havia se mudado para fugir da perseguição de Hitler, ela, a irmã e os pais, com a invasão dos alemães ao território holandês, passaram a morar num esconderijo montado sobre a casa comercial dos Franks. Dois anos depois desse período de vida clandestina, descoberto o anexo que lhes servia de abrigo, todos (incluindo algumas pessoas fora da família vivendo naquele lugar a mesma situação) foram presos e levados separadamente a diferentes campos de concentração em regiões europeias próximas. Único sobrevivente da família, o pai, Otto, por ter recebido de uma amiga deles o diário de Anne Frank, que ela encontrara, foi o responsável pela publicação das anotações da filha, transformadas ao longo dos anos em impressionante sucesso editorial mundo afora até os dias de hoje.

Uma foto, em especial, marca a Guerra do Vietnã. Com os braços abertos, o corpo nu queimado e a expressão de terror no rosto, Kim Phoc, atingida por uma bomba química e fotografada em fuga desesperada com outras crianças, tornou-se o símbolo de um pesadelo que é uma guerra. À época desse registro, junho de 1972, tinha 9 anos.

Aylan Kurdi, 3 anos, morreu afogado em setembro de 2015 junto com o irmão Ghaleb e a mãe (apenas o pai se salvou) no naufrágio de uma embarcação síria no Mediterrâneo, quando a família tentava fugir mais uma vez dos sangrentos combates na Síria. As imagens do pequeno Aylan, encontrado morto na costa turca, causaram intensa comoção por toda parte e suscitaram debates em torno da política para refugiados da Europa e outras partes.

Anne, Kim e Aylan são nomes que entraram para a história como vítimas de distintos e trágicos períodos vividos por significativa parcela da humanidade. Na condição de crianças, são a prova, infelizmente permanente, do quanto as guerras não poupam ninguém. Kim, a menina da icônica fotografia sobre as atrocidades cometidas no Vietnã, sobreviveu a elas, sem deixar de passar por anos terríveis de muito sofrimento provocado por traumas e longos tratamentos médicos. Vive hoje no Canadá e atua em programas de auxílio a crianças atingidas por lutas armadas.

Quanto a Giosué, ele é a representação de tantos meninos de verdade, fora das telas do cinema, vivendo, sobrevivendo ou morrendo realmente em zonas de conflito, sem que a proteção necessária os alcance. Que o digam as cenas chocantes a que assistimos atualmente sobre essa insana guerra na Ucrânia.

Carregados nos braços que tentam acolhê-los ou levados por mãos adultas e apressadas, não se sabe bem para onde, rostinhos chorosos e assustados, os pequenos fogem. De um jeito ou de outro, como fez Hassan al-Khalaf, o garoto ucraniano de 11 anos. Mandado pela mãe em um trem com destino à Eslováquia e carregando uma sacola de plástico, o passaporte e o número do telefone de um irmão escrito na mão, Hassan atravessou sozinho a fronteira do seu país, viajando mais de mil quilômetros para encontrar os irmãos mais velhos. Pelos corredores nada humanitários, levas de civis ucranianos configuram a triste diáspora de hoje: crianças, jovens, idosos, doentes, e a terra querida deixada para trás. Nas pequenas bagagens arrastadas pelos caminhos do desconhecido cabe apenas o que permite o senso prático e desesperado do momento.

“A guerra é nojenta, e o que ela nos tira, quando não nos tira a vida, nunca mais devolve”, Joel Silveira (1918-2007), correspondente de guerra na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.

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