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Espelho

12 de Junho de 2018, por João Bosco Teixeira

Há um elemento da cultura universal, expresso também na literatura e nos tratados de várias ciências humanas, que oferece chaves para a leitura e interpretação de aspectos do comportamento humano.  Trata-se do “mito”.

Os mitos contêm fonte enorme para a leitura da vida.  De per si, eles nos levam até o fundo das reservas psíquicas da humanidade. Eles criam uma ponte entre o desconhecido e o conhecedor.

Considero, aqui, o mito de Narciso, que se vê refletido no espelho das águas.

 Falar de Narciso é falar, pois, de “espelho”. Espelho que favorece uma investigação orientada, de um lado, para o amor (eros); e, de outro, para a morte (tánatos). No centro do mito, encontra-se o olhar, na sua função de ilusão: Narciso se olha e não se reconhece. Narciso se desconhece no outro. Para Narciso, o mundo se abre em sons e luzes, mas também fecha-se no silêncio e no escuro. O que leva Pausânias a dizer que Narciso não se dando conta de que via sua própria imagem, apaixona-se por si mesmo e morre de amor à beira da fonte. No mito verifica-se a verdade da dramatização de valores conscientes e inconscientes, numa radical apreensão da realidade. De que são capazes os espelhos!

E quem não os tem? Maiores, menores, todos a refletirem a imagem que diante deles se posta. Imagem plurifacetada da mesma figura, na dependência de tantas variáveis, quais tempo e espaço, luz e sombras, consciência e inconsciência. Para cada tempo e circunstância o espelho dá uma resposta. É gerador de alegrias e tristezas, de felicidade e infelicidade, de amor e ódio. Pode-se utilizá-lo com total desembaraço. Igualmente, com absoluto comprometimento. Para tudo dá oportunas respostas. Pode alcançar a verdade ou deixá-la suspensa. Pode ser fonte de confiança e de desconfiança. Fonte de amor e de sofrimento no amor. Sempre a retratar uma realidade.

A leitura dos mitos é uma forma de psicoterapia individual. E no mito de Narciso, o espelho é, então, excelente instrumento para que as pessoas perscrutem seu próprio ser, sua humanidade, sua mortalidade. É excelente instrumento que pode levar as pessoas a superarem a ilusão de onipotência, de eternidade.

Cantado e decantado em mil formas ao longo da história da humanidade, Narciso continua vivo como forma inexcedível de contemplação da realidade: rica, assustadora, tranquilizadora. Sempre realidade. Sempre espelho.

Fico a pensar se se tem no espelho uma ajuda inestimável. Fico a pensar de que liberdade é preciso estar dotado para se mirar no espelho, dada a imensa variedade de sentimentos que o se ver no espelho é capaz de manifestar. Mas fico também imaginando...

Fossem as paredes de tantos espaços públicos cobertas de espelhos, talvez tivéssemos saudável melhoria no comportamento de nossos representantes públicos, homens e mulheres. Quem sabe os levaria a entender que não podem ser eles os contemplados pela sua atividade política. Quem sabe os levasse a abandonar os holofotes que os cegam.

Narciso. Espelho. Reflexo da intimidade profunda. Vida real. Realidade viva!

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