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Quem tem medo de uma novela?

27 de Marco de 2024, por Lari Ibúmi Moreira

“Renascer”, novela original de Benedito Ruy Barbosa exibida em 1993, agora adaptada por seu neto, Bruno Luperi, está no ar desde o final de janeiro deste ano e já rendeu cenas espetaculares, especialmente em sua primeira fase. A novela colocou em lágrimas o noveleiro Milton Nascimento, filmado em casa, emocionado com uma das canções mais lindas interpretadas na sua voz, “Clube da Esquina II”, embalando a passagem do tempo na transição para a segunda fase da trama. Muito se falou da necessidade de se valorizar as produções brasileiras que nada perdem para muitas séries americanas. Eu, noveleira que sou desde que me entendo por gente, e também apaixonada por literatura, gosto do estilo de Luperi em parceria com Gustavo Fernández na direção, trazendo poesia com as câmeras, os takes, os enquadramentos, a iluminação, as transições.

O gênero novela me moldou. Talvez metade dos meus dramas internos sejam romanceados pela experiência novelesca, as dores pelos anos de falta de representatividade. O jeito de enxergar as relações. Mas a novela também me trouxe cultura, a música popular brasileira. Eu, pequena, conhecendo Chico, Djavan, Milton, Caetano, Bethânia, Gal pelas trilhas sonoras e me apaixonando por suas músicas sem ainda nem conhecer seus intérpretes. Nesse ponto, e em tantos outros, vejo um poder didático da categoria. A função essencial de uma obra de arte, no sentido estrito da palavra, uma obra artística como a novela, não é ensinar, mas ela ensina. E tem a capacidade de entrar nos lares das mais diversas constituições familiares democraticamente, em sinal aberto. Não é à toa que o horário das 21h é o tal do horário nobre da Globo. E “Renascer” é de uma nobreza rara. Vou explicar o porquê.

Há muito venho observando como a novela traz à cena elementos do candomblé, religião de matriz africana, de forma muito delicada, cuidadosa, estudada. Ao mesmo tempo em que a devoção mariana, presente em todas as novelas do autor, possui a centralidade. Nossa Senhora é mais que um elemento de cenário com o qual se contracena, ela é também personagem a quem se atribui ações e por ela se rendem monólogos inesquecíveis. Acontece que o candomblé vem sendo elemento da trama de uma forma muito naturalizada, humanizada, sem cair em estereótipos. Como prática cotidiana.

Em uma das cenas mais emblemáticas que vi nos últimos anos, está a conversa entre Inácia (Edvana Carvalho), que herdou de sua mãe o culto aos orixás, e o pastor Lívio (Breno da Matta).  O pastor, na busca de compreender as muitas formas de se entender Deus, se abre para ouvir a experiência de Inácia. Ele pergunta se existem muitos orixás e Inácia diz que é “pra mais de 200 na África”, mas que com os desmantelamentos da escravidão sobraram 17 e suas variações. Não pude deixar de me lembrar de quando eu, graduanda em História e apenas uma curiosa do mundo religioso afrobrasileiro, tive uma conversa com o saudoso Padre Raimundo, que me deu uma apostila sobre orixás, quem eram e os seus significados. Padre Raimundo foi um desses sacerdotes que não só reconheceu a fé do outro como legítima, mas que foi capaz de me ensinar sobre ela. A cena em questão é a utopia de um Brasil onde as fés se encontram e dialogam. Na qual uma não tenta se sobressair sobre a outra nem demonizá-la, mas compreendê-la. Foi uma aula de um Brasil possível, ao menos na novela.

O racismo religioso e a intolerância religiosa são crimes. Mas a ignorância ainda não o é. É possível conviver respeitosamente com a crença alheia, como fez na realidade Padre Raimundo e, na ficção, pastor Lívio. Isso lhe gera medo ou reflexão? De onde vem esse medo? Da secular demonização de práticas que o branco desconhecia desde que pisou em África. Da desumanização de tudo que é negro, que é do negro, que vem do negro. Da ficção para a realidade, o racismo religioso mata, destrói e segue a política de extermínio das religiões de matriz africana. Dos corpos que celebram o sagrado com festa. Que a novela continue estabelecendo afetos, no sentido de afetar, gerar emoções e reações, para um país que precisa naturalizar o diferente e equalizar a oportunidade de se existir.

E é por estar ali presente para milhares de telespectadores que a novela cumpre o papel de naturalizar o que já devia ser naturalizado. Descortina uma crença que assombra o fio cortante do preconceito e convida ao diálogo. Boicotes sempre irão existir, pois sabemos a força que uma novela tem em traduzir a realidade em fantasia, ser parte de um cotidiano e, quem sabe, transformar um alguém. Fazer serem vistos aqueles que se querem apagados. Você tem medo dessa força?

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