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O boi não é marido da vaca

13 de Julho de 2017, por Evaldo Balbino

Sei que os bovinos não se casam. Felizes eles, pois não criaram instituições que tornam os humanos atabalhoados e preocupados com cerimônias prazerosas mas cheias de trabalho. Os bois e as vacas se olham, se roçam, se acasalam. Simplesmente vivem a vida sem muitas invenções.

No entanto, como viver é também carregar cruzes, esses quadrúpedes pagam lá o seu preço. Desde os tempos antigos têm servido ao homem que muitas vezes os trata sem o devido respeito.

Já eu os respeito demais da conta. Gosto de vê-los ruminando no pasto, numa paciência maior que a de Jó. E olha que, mesmo sofrendo, não apelam para Deus, não questionam nada. Pelo menos é isso que meus olhos e ouvidos humanos acham. As vãs certezas humanas. Os achismos. E enquanto vou achando, fazendo deduções apoiado em minha duas pernas, os bovídeos vão pastando sobre duas patas e dois pés. E seus olhos olham os pertos e os longes, estendem-se pelas campinas silentes, às vezes mugindo e outras dormitando, as pálpebras cerradas para espreitar o silêncio do mundo.

Amo os bois e as vacas. E os bezerrinhos, nem se fala! No início meio molengos, quando recém-nascidos. Uma graça de lerdeza que me faz apaixonar. Depois a esperteza, perdendo somente para os cabritinhos.

Não tenho receio do gado do mundo. Só não uso roupa vermelha quando passo perto de seus corpos rijos, olhos arregalados e orelhas em pé, atentas. E isso não é mito. É verdade. Certa feita, num hotel-fazenda perto de Belo Horizonte, quando vários professores da universidade onde trabalho estávamos num seminário interno, um grupo de colegas fomos indo para a área gourmet na hora do almoço. Atravessávamos uma trilha de pedrinhas no meio do pasto. Uma professora passou perrengue com suas roupas de um vermelho escancarado. Se não fosse o resto do grupo para tapar a presença encarnada daquela mulher, ela teria sido um alvo perfeito de uma vaca furiosa.

Volto a dizer: o boi e a vaca não se casam. Uma vez, porém, quando eu era adolescente lá em 1990 na Escola Conjurados Resende Costa, como teria gostado que eles fossem casados. Melhor ainda: teria adorado se eles fossem um ser só, inseparável. Nem adiantaria que fossem simplesmente o macho e a fêmea de uma família de mamíferos. Explico o porquê dessa minha insanidade.

A professora de História, Elzi Reis, trabalhava conosco a sociedade hindu. E eu me empolgava com o livro: as ilustrações me mostrando um deus de faces e braços, poderoso para criar e recriar o mundo com a beleza de uma flor de lótus (a pura beleza imperecível), a arquitetura sublime e as vestimentas exóticas para mim. Lembrem-se: estou falando de uma época em que não tínhamos internet, essa coisa toda de acesso fácil e rápido às informações do mundo todo dia e toda hora, até mesmo lá dentro de nossa casa com um simples aparelhozinho. Não, não tínhamos.

E me apaixonei, não me esqueço, pela foto da escultura grande de uma vaca, e outra foto ao lado (na mesma página do livro) de uma vaca de verdade sendo abraçada por um homem. E a professora falava que os indianos tinham a vaca como animal sagrado, não comiam sua carne e não a maltratavam. Então me deu vontade, ali mesmo na aula de História, de morar na Índia, de conviver com essa existência sagrada sobre quatro apoios, com seu leite farto para bezerros tenros e cheios de vida. Essa vontade me deu até desejos de Paraíso, aquele mítico e perdido lá nas eras adâmicas, onde todos os seres viviam em paz entre si.

Esse meu desejo, porém, sofreu um primeiro golpe uns quinze dias depois. A professora nos aplicou uma prova sobre as sociedades estudadas. Numa questão de V ou F, afirmava-se num item que o boi era o animal sagrado da Índia. Marquei um V ali entre os dois parênteses, crente de que estava certo, certíssimo, numa inabalável certeza como a que me faz segurar nas vestes ardentes de Deus.

Uma vez entregue a prova corrigida, meu desapontamento. Eu tinha errado a atividade. Como podia esse negócio de a vaca sim ser sagrada e o boi não!? Alguma coisa errada havia naquilo. Não que eu achasse que a professora e o livro estivessem errados. Mas também não aceitava que animais da mesma família fossem considerados à parte. A Taxonomia não me salvava de desilusões. Esse fato só serviu para eu achar muito complexa a humanidade e para insistir, outra vez e às minhas expensas, no sonho de que o boi e a vaca são um só corpo vivendo na plenitude de um campo paradisíaco. Um campo sagrado e imperecível.

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