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O bardo ao vivo

15 de Janeiro de 2019, por Renato Ruas Pinto

Discos ao vivo sempre têm potencial para serem interessantes. Afinal, é a chance de ouvir o artista em uma condição mais verdadeira e natural. Eu digo potencial, pois nem sempre os discos ao vivo são totalmente autênticos. Há sempre o risco de algum trecho ter sido retocado em estúdio ou de ser uma gravação de má qualidade mesmo. Essas últimas podem até animar fãs mais apaixonados, pela chance de ouvir algum registro com alguma história curiosa, mas podem decepcionar o ouvinte mais casual.

Bob Dylan sempre foi um alvo desse mercado paralelo de gravações ao vivo e de sobras de estúdio, os chamados discos bootleg. Em bom português, gravações piratas. A biografia de Steve Jobs revela que, em sua juventude, o criador da Apple estava sempre atrás desse tipo de gravação, já que era grande fã de Dylan. Uma gravação que circulou entre fãs no passado foi de um suposto show de Dylan no prestigiado Royal Albert Hall, em Londres, no ano de 1966. O disco chegou a ser lançado oficialmente por Dylan em 1998, para tempos depois se descobrir que o show foi gravado na verdade em Manchester, na mesma turnê. Recentemente, a verdadeira gravação feita no Royal Albert Hall foi lançada em uma edição de boa qualidade, batizada de “The Real Royal Albert Hall Concert”.

É um registro bastante interessante tanto para fãs quanto para quem conhece apenas superficialmente Bob Dylan. Ele, sem sombra de dúvidas, é um dos pilares do rock moderno pela influência que sua obra exerceu em tantos artistas do gênero. Se por um lado a natureza não abençoou Dylan com uma voz bonita e cristalina – muito pelo contrário –, o seu talento como compositor e poeta o colocou como inspiração para artistas de todo o mundo. Dylan começou como um artista ligado ao estilo folk, norte-americano, a música folclórica de origem rural e interiorana dos EUA e que guarda vários paralelos com nossa música caipira tradicional. Pautada pela simplicidade, a música folk sempre se apoiou em instrumental tradicional, como o violão, a rabeca (violino), gaita e percussão simples. Um certo dia, em 1965, no famoso festival de música folk na cidade de Newport, Bob Dylan ousou subir ao palco com uma guitarra elétrica e acompanhado de uma banda com baixo, órgão e bateria, para horror dos puristas do folk, que receberam o sucesso recém-lançado “Like a Rolling Stone” com vaias e gritos de “traidor”.

Era um caminho sem volta e Dylan estava disposto a eletrificar seu som e, assim, causaria profundas mudanças no rock. Em 1965, bandas como os Beatles e os Rolling Stones ainda agiam de forma comportada e faziam música inocente e de cunho mais juvenil. Dylan estava, então, apontando um caminho onde a potência das guitarras poderia ser direcionada para levar uma mensagem com substância, em linha com as mudanças que aqueles tempos turbulentos pediam. Desse momento em diante, o rock se tornaria voz de lutas contra a segregação racial e guerras como a do Vietnã, assim como outras tantas causas. E esse disco ao vivo de Dylan é um retrato justamente desse momento e da transição pela qual o próprio artista passava. O disco é duplo e mostra dois shows distintos. No primeiro, Bob Dylan se apresenta só com violão e gaita, no seu melhor estilo folk, para voltar no segundo disco acompanhado do sólido grupo que o apoiou por um bom tempo, a “The Band”, com todo o instrumental roqueiro.

Com certeza, ele deve ter causado surpresa e frustração. No disco do “falso Royal Albert Hall”, aquele de Manchester, é possível ouvir um espectador furioso chamá-lo de judas. Entretanto, se algo que Dylan nunca fez foi se pautar pela opinião popular ou modismos. Assim, ele levou o rock para um caminho sem volta, transformando o estilo em mais profundo e engajado. E, definitivamente, parte indissociável de uma série de mudanças culturais e de comportamento de um mundo em transformação. Com violão ou guitarra, não importa. A força da música de Dylan é impressionante. Não deixe de conhecer esse trabalho do bardo, retrato de um momento importante para o rock e a música popular.

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