Houve um tempo em que grupos com ênfase nos vocais bem trabalhados em complexas harmonias foram mais comuns no Brasil. Lembre-se, por exemplo, dos tempos áureos dos festivais e de como a performance do MPB-4, com um arranjo magistral de Magro, integrante do grupo, abrilhantou “Roda viva”, de Chico Buarque. Pode-se dizer que o arranjo em quatro vozes se tornou praticamente indissociável da música. Além do MPB-4, podemos citar outros grupos que ficaram conhecidos, como Os Cariocas, o Quarteto em Cy, Trio Marayá e Os Diagonais.
Esses grupos obtiveram sucesso se apresentando sob a própria bandeira, mas a sua qualidade frequentemente os transformava em convidados de luxo em discos de grandes artistas. Com o tempo, foi ficando cada vez mais raro ver esse tipo de formação por motivos esperados: além do desafio de se reunir grandes vozes, o repertório é necessariamente complexo por conta dos arranjos. E para se fazer o arranjo, muitas vezes precisa-se de profissionais com formação em orquestração ou muita sensibilidade para casar mais vozes de maneira correta.
A complexidade desse tipo de trabalho só faz com que a minha admiração aumente por música feita assim, quando a voz humana se torna o instrumento principal. Por esses dias, tive a felicidade de assistir ao vivo um dos grupos mais tradicionais do país, o Boca Livre. Após um período de turbulência interna no grupo, eles voltaram e mostraram que seguem em forma e emocionando. Recentemente, foram premiados com o prestigiado prêmio Grammy de melhor álbum de Pop Latino, e uma das dicas de audição é justamente o quarteto. Para mostrar que, com todas as dificuldades que citei, o formato resiste, a outra dica é sobre o talentoso Trio Amaranto, que também sempre emociona com vocais incríveis. Não deixem de ouvir.
Boca Livre – “Rasgamundo” e “Parceiros/Pasieros”: o último lançamento do grupo é o álbum “Rasgamundo”. Seus membros assinam várias faixas em parcerias com nomes de peso, como Erasmo Carlos, Márcio Borges e Zeca Baleiro, e mostram a veia autoral. Também recomendo muito ouvir o álbum “Parceiros/Pasieros”, feito em conjunto com o renomado cantor e compositor panamenho Rubén Blades, autor das faixas. O disco é, na verdade, um “dois em um”, já que são dois álbuns, um com as músicas no original em espanhol e outro com versões em português. O álbum foi ganhador do prêmio principal do Grammy (não confundir com o Grammy Latino, que contempla só produções latino-americanas) de melhor álbum Pop Latino. Aliás, esse feito foi vergonhosamente ignorado pela grande mídia, que preferiu destacar o fato de que Anitta não ganhou o prêmio a que concorria no mesmo ano.
Trio Amaranto– “BenditoJazz” e “Amaranto 25 anos”: o trio das irmãs Flávia, Lúcia e Marina Ferraz está em atividade há mais de 25 anos, além de alguns anos atuando como “Flor de Cal”, antes da entrada de Marina no grupo. Como exige o formato, as três são donas de belas vozes e trabalham arranjos incríveis para o repertório de grandes clássicos da música brasileira e da internacional, além de composições próprias. No álbum “BenditoJazz” elas apresentam um interessante repertório de clássicos de Cole Porter e dos irmãos George e Ira Gershwin, acompanhadas do trio do competente baixista Kiko Mitre. O show da comemoração dos 25 anos do grupo não é um álbum, mas está disponível em ótima qualidade de áudio e vídeo no canal oficial do YouTube (@amarantooficial). Nele o trio apresenta um repertório complexo e riquíssimo, onde se pode conhecer a qualidade do trabalho. Além disso, elas possuem uma discografia possível de ser apreciada nas plataformas.
A voz humana é um instrumento e tanto e as possibilidades que a harmonia possibilita são surpreendentes. E quando grandes cantores e arranjadores se juntam para dar vida a uma canção, o resultado é sempre emocionante. É um tipo de trabalho, como dito acima, de alta complexidade e, logo, raro de ser encontrado, o que só aumenta a nossa satisfação e admiração quando podemos ouvir grupos que levam em frente essa tradição.