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Pena que durou pouco

11 de Maio de 2020, por Renato Ruas Pinto

Com certeza não estou falando desta quarentena, que ainda deve se arrastar por algum tempo. Estou falando de dois grupos incríveis que fizeram muito barulho quando surgiram, inovaram em muitos aspectos e terminaram em pouco tempo de existência e de maneira tempestuosa. Mesmo assim, a influência de ambos ainda se faz sentir e sempre entram nas listas dos grandes grupos de música popular: o inglês “The Cream” e o brasileiro “Secos & Molhados”. Em comum, como mencionei, o enorme impacto quando surgiram e o fato de terminarem com brigas entre seus integrantes que perduram até hoje.

O The Cream foi formado em 1966 por três músicos que já tinham grande reputação na cena londrina da época: o guitarrista Eric Clapton, o baixista Jack Bruce e o baterista Ginger Baker. Três virtuosos, suas apresentações eram marcadas por longos e inspirados improvisos e por uma abordagem eletrificada e pesada do blues. Possivelmente, foi o primeiro power trio do rock – formação enxuta e de sonoridade densa – e abriu caminho para outros grupos como o Jimi Hendrix Experience. Duraram apenas dois anos e pouco e lançaram quatro álbuns. As brigas constantes entre Baker e Bruce foram decisivas para o fim abrupto do grupo. Dizem as lendas que houve até um ataque de faca em uma das discussões entre os dois. Ao longo dos anos os músicos até colaboraram em trabalhos uns dos outros e fizeram uma reunião em 2005, com alguns shows bastante concorridos registrados em disco e DVD. Porém, dizem que o clima não era dos melhores, mesmo após tanto tempo.

O Secos & Molhados, por sua vez, era composto pelos então desconhecidos Ney Matogrosso, Gérson Conrad e o português João Ricardo. Com composições criativas, que promoviam uma fusão de vários ritmos, performances teatrais com roupas extravagantes e rostos pintados e, é claro, a voz incrível de Ney Matogrosso, causaram furor. Com um visual e comportamento andrógino, chocaram e fascinaram ao mesmo tempo. O sucesso do disco de estreia foi tal que a gravadora teve problemas para prensar discos. O ano era 1973 e o mundo passava pela crise do petróleo, matéria-prima para a prensagem dos discos de vinil. Para dar conta da demanda, a gravadora foi obrigada a derreter estoques de discos encalhados. Após apresentações até no exterior e um concerto histórico no Maracanãzinho, recorde de público na época, o grupo se dissolveu após o segundo disco. João Ricardo levou o trabalho adiante e manteve o nome do grupo, mas sem o mesmo sucesso. As mágoas devem ser profundas, pois os três integrantes nunca mais se reuniram e até hoje evitam falar a respeito.

Com uma existência tão curta, as discografias são naturalmente pequenas, mas ainda assim de muita qualidade. O Cream lançou quatro discos. Desses, apenas o último, com o sugestivo nome de “Goodbye” (adeus), não vale a pena por ser um compilado de sobras de estúdio para cumprir contrato. Os demais, “Fresh Cream”, “Disraeli Gears” e “Wheels of Fire” são ótimos, com destaque para o “Disraeli Gears”, que volta e meia aparece em listas de grandes álbuns do rock. O terceiro, “Wheels of Fire”, possui algumas faixas ao vivo que mostram bem a pegada e o virtuosismo da banda. A reunião de 2005 rendeu um bom disco ao vivo. Embora não carregue a mesma energia dos originais, os músicos continuavam afiados.

Já o Secos & Molhados lançou apenas dois discos na formação original e ambos são excepcionais. O disco de estreia de 1973, o da clássica foto das cabeças servidas em um banquete, emplacou vários sucessos como “O Vira”, “Sangue Latino” e a belíssima “Rosa de Hiroshima”, um poema de Vinícius de Moraes musicado por Gérson Conrad. O segundo álbum, de 1974, manteve o alto nível com “Flores Astrais”, “Não: Não Digas Nada” e outras.

O Cream e o Secos & Molhados duraram muito pouco, mas causaram um impacto enorme e influenciaram muitos artistas. Por que terminaram tão cedo? É difícil explicar. Tal como certas reações químicas, talvez fosse difícil controlar tanta energia. De todo modo, o legado, os ótimos discos e o status de lenda ficaram para a posteridade. Não deixe de ouvir.

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