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Vida longa ao mestre Gil

19 de Setembro de 2018, por Renato Ruas Pinto

O ano continua ótimo em termos de lançamentos. Quem acompanha essa coluna sabe que eu sempre dou preferência a falar de artistas novos ou independentes, mas não posso fechar o espaço aos mestres, especialmente quando eles vêm com lançamentos de primeira categoria. E o da vez foi uma surpresa mais do que agradável, o excelente “OK OK OK”, de Gilberto Gil. Sobre a expressão “surpresa”, é preciso abrir um parêntese e me explicar melhor. Não é que qualidade seja inesperada em um trabalho vindo de Gilberto Gil, um dos maiores nomes da música popular de todos os tempos e um verdadeiro ás da canção. O disco surpreendeu ao lembrar que Gil esteve em uma situação delicadíssima há pouco tempo, ao passar por diversas internações e longos períodos no hospital. Ainda assim, ele mostrou que sua criatividade segue a mil, com potência de sobra para botar na praça um disco que consegue ser ao mesmo tempo colorido e denso de conteúdo.

Sempre achei Gilberto Gil a verdadeira encarnação do tropicalismo, que, na definição do próprio artista, seria a mistura da Banda de Pífanos de Caruaru com os Rolling Stones. E Gil, de fato, sempre transitou por diversos estilos – do forró ao reggae ou samba – com muita autenticidade. Os meus elogios para ele não são poucos, pois ele reúne tudo aquilo que o faz um músico popular completo: letrista inspirado, mestre do formato de canção, dono de uma batida sempre contagiante e, finalmente, artista com uma presença de palco impressionante. Além disso, sempre foi ligado no seu tempo, antenado com o momento e conseguiu se manter atual com o passar das décadas sem forçar a barra ou soar falso. Em “OK OK OK”, trabalho lançado no mês de agosto, ele definitivamente teve sucesso ao soar como produto fresco e não só reciclagem do seu passado.

Fiquei com a impressão de que Gil trouxe para o álbum sentimentos diversos por tudo que viveu em tempos recentes: dos momentos felizes, da comemoração dos 50 anos de carreira em turnê com Caetano Veloso e a chegada de uma bisneta e um neto; e momentos ruins, como os já citados problemas de saúde e a situação política do país. Esses temas estão no disco, e algumas vezes, entrelaçados. Gil celebra os netos nas belas “Sereno” e “Sol de Maria”, sendo que essa última é a que se espalhou pela internet em um vídeo caseiro com o próprio Gil cantando para uma sorridente homenageada. O tema da doença aparece em vários momentos: nas homenagens explícitas “Quatro Pedacinhos” e “Kalil”, ambas dedicadas a médicos que cuidaram dele, ou “Jacintho”, dedicada ao empresário Jacintho Onório.

Outras homenagens aparecem no disco em canções inspiradas, como “Lia e Deia” e “Yamandu”, sendo que a última conta com a participação do violão virtuoso de Yamandu Costa. E falando em participações, o disco também conta com o consagrado João Donato em duas faixas e com Roberta Sá, que divide os vocais na romântica “Afogamento”. O disco fica bastante sério nas faixas “OK OK OK” e “Ouço”, onde Gil fala dos dias atuais e toca na situação política, assunto do qual Gil nunca se esquivou e sempre fez questão de tomar lado. E sobre dias atuais, ele faz uma releitura muito curiosa da faixa “Pela Internet”, do disco “Quanta” de 1997, em “Pela Internet 2”, onde atualiza a música para os nossos tempos de curtidas, nuvem, redes sociais e uma crítica aguda a quem espera “o advento de Deus pelo iPhone”.

Enfim, Gilberto Gil mostrou que não vive do passado e não caminha pela trilha fácil da repetição ou dos clichês. Em um disco totalmente autoral, ele faz o que sempre fez de melhor: desfila por diferentes ritmos, mistura canções engajadas com outras românticas ou leves e, é claro, sempre com seu swing característico. O selo Biscoito Fino, pelo qual saiu o disco, acerta com louvor na descrição em seu site: “ao ouvinte, admirador ou não de sua obra, temos nesse disco Gilberto Gil de sobra”. Que esse músico incrível continue nos presenteando com trabalhos desse quilate.

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