A boemia do Centro Histórico

As contradições e similaridades dos bares que movimentam a vida noturna são-joanense


Beatriz Estima, Millena Fagundes, Rhayssa Sousa, Talita Ribeiro e Vanuza Resende*


Fachada do bar Bico de Lacre. Ao fundo Igreja do Carmo

Sendo uma das maiores cidades setecentistas mineira, São João del-Rei atrai turistas de todo Brasil e do mundo. O município, que em 2007 foi escolhido Capital Brasileira da Cultura, hoje reúne em seu Centro Histórico diversos bares e restaurantes que agitam a vida noturna na cidade universitária.

A presença das instituições de ensino superior, como a Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e o Centro Universitário Presidente Tancredo Neves (IPTAN), faz de São João a dualidade entre os novos estudantes que chegam a cada semestre, e a arquitetura antiga, que reúne construções em estilos como o Barroco, surgido no final do século XVI e presente até hoje na cidade.

Essa duplicidade se estende às opções de gastronomia e lazer do Centro Histórico de São João del-Rei. As principais ruas e praças que compõem o lugar, como a Rua Getúlio Vargas e a Rua da Cachaça, possuem ambientes desde a fina gastronomia até aquele botequim antigo, sempre muito procurado para um cigarro ou uma bala. Como representante da segunda categoria, está o Bico de Lacre.

Apontaram o dono do bar. Atrás do balcão, de cabeça branca, anotava alguns números em um pedaço de papel. Virou-se para dar boa noite: Zé Luiz, nascido e criado no Bico de Lacre e atual gerente proprietário. Nunca tirou férias, a não ser quando as pernas cansadas de ficarem em pé exigiram procedimento médico, por duas vezes.

Bico de Lacre surgiu no Centro Histórico de São João del-Rei há aproximadamente seis décadas e faz 44 anos que está na família de José Luiz. Depois que o figura patriarca se aposentou, três dos cinco filhos assumiram o posto de comandar um dos bares mais antigos da cidade.

Tudo no local parece levar quem o frequenta às décadas passadas. Um orelhão que ainda funciona, uma caixa registradora antiga, balcões de vidro com produtos e comidas expostos. Para completar, avisando que não vende fiado, pode-se ler o cartaz atrás do balcão: “não aceitamos filar! (Nada de anzolar)”.

Os três clientes sentados nas tradicionais cadeiras de plásticos não se importavam com o movimento da rua, mas acompanhavam atentamente o pouco movimento interno. Nem sempre foi assim. “Quem frequentava aqui sempre foram pessoas de mais idade. Antigamente esses ‘doutores’ gostavam muito de frequentar esse bar que era bonito e grande. Muitos doutores e advogados gostavam de vir para cá”.

Apesar do tom saudoso na voz, Zé Luiz acredita que o bar criou uma nova identidade. “Ah, hoje é muito difícil de mudar aqui. E, se mudar, tenho clientes que dizem que não vêm mais”.


O prato da casa não é típico da culinária mineira

“Não é crime, é contravenção”, justifica Zé Luiz ao contar que o Bico de Lacre só está aberto por conta dos banqueiros do jogo do bicho. Criada em 1892, no Rio de Janeiro, a aposta em números que representam animais é comumente praticada no Bico de Lacre.

Segundo Zé Luiz, por vezes já aconteceu de ter que ir até o juiz e pagar algumas cestas básicas pela prática irregular, mas ainda assim é compensatório. “Às vezes alguém denuncia a gente, a polícia vem te leva, te bota no carro, te leva na delegacia. Você fica lá umas duas horas, assina um termo, aí depois você vai para o fórum e paga umas cestas básicas, mas cadeia não dá”.

Trabalhando no mesmo ritmo que Zé Luiz, se encontra Hamilton Vieira, dono do Barteliê, famoso bar e galeria de arte localizado na conhecida “Rua da Cachaça”, em São João del-Rei. Ao contrário, no entanto, do Bico de Lacre, o Barteliê promove ações culturais que se realizam durante o ano e seu público principal são universitários, professores e artistas, além de receber turistas do mundo todo.

Hamilton vive da boemia que a própria rua proporciona. O bar é também um ponto de encontro das artes, que fazem das suas paredes uma verdadeira galeria. Entre risadas, copos de cervejas e cigarros, as mesas do lado de fora se enchem e as dezoito horas já começa o movimento. Hamilton fala que durante os três anos desde que o Barteliê inaugurou, não conseguiu tirar férias, e para aguentar o ritmo teve que fazer algumas mudanças nos seus horários de funcionamento. “Gerir um bar não é nada fácil, ainda mais um com a perspectiva que o Barteliê tem, com as exposições e galerias, precisa sempre estar inovando”, comenta o dono.

O Barteliê já nasceu na cena cultural da cidade. Reza a lenda que seus cômodos eram uma taberna que serviu de ponto de encontro e reuniões dos inconfidentes. “Estamos em um local de resistência, da Inconfidência Mineira. Dizem que o Barteliê é muito conspirador, mas não, ele é aquilo que o povo é”, conclui Hamilton.

 

O novo e o velho

O Pantanal, na rua Getúlio Vargas, é, assim como o bar do seu Zé Luiz, um dos mais antigos da cidade. Mas o Pantanal tem algo que o diferencia dos demais: ele consegue conservar os antigos frequentadores e moradores do centro histórico, e ao mesmo tempo ser um dos bares tradicionais mais frequentados pelo público universitário. O conhecido casal que está a frente do bar desde 1990 é Carlos Roberto e Maria do Carmo Andrade, chamados carinhosamente de Seu Roberto e Dona Carminha.

O bar é pequeno - uma portinha nos leva ao interior - com as paredes todas preenchidas por diversos chaveiros e uma galeria de fotos de bloco de carnaval, pescaria, viagens. Atrás, no balcão, seu Roberto serve uma cachaça para alguém, sempre as variadas opções: carqueja, mexerica, coco e a pura.  Inclusive, Dona Carminha revela mais tarde a curiosidade de que o nome Pantanal foi escolhido devido às raízes que ele coloca nas garrafas para curtir a pinga. Um banheiro nos fundos e atrás, a escada que leva para a casa. Dentro, a tv ligada, um samba tocando, alguns homens mais velhos. Na rua, o bar se alastra, todas as mesas lá fora estão cheias, a maioria são universitários.

Dona Carminha diz que o casal é praticamente de São João, pois moram na casa em cima do bar há quarenta anos. Ela usa a cozinha da casa para fazer a famosa comida de buteco, uma das qualidades diferenciais do Pantanal, sempre muito gostosa e barata. Carminha, com seus 69 anos, sintetiza o segredo do bar em simplicidade e qualidade no atendimento. Ela diz que desde quando foram criadas as faculdades na cidade, o bar sempre foi frequentado pelos universitários, que se reúnem na porta do bar com as frequentes rodas de samba.

Conta ainda que não tem época do ano específica em que o bar enche mais: “não tem isso, o bar sempre está cheio, sempre tem estudantes...as pessoas acabam vindo e ficando até tarde, e sempre acabam voltando. Mesmo turistas, quando voltam na cidade vêm aqui de novo.” O bar é um ponto de encontro obrigatório na cidade, e além de todas as qualidades e alegrias que nos conta, ela diz que o carnaval, por exemplo, sempre é bom, pois reúne os novos e os antigos frequentadores do bar no tradicional Bloco do Pantanal.

Segundo Matteu Recinella, uma boa conversa regada a uma bebidinha é essencial para relaxar. O universitário frequenta com regularidade os bares da cidade, e comenta que gosta da sensação de liberdade para conversar sem ter a obrigação de gastar muito. “Gosto de me sentir à vontade financeiramente, que eu possa ‘colar’ em um bar que não necessita que eu consuma pra me divertir, gosto do espaço e das pessoas”, afirma Matteu confirmando a participação dos barzinhos na vida dos moradores e visitantes de uma cidade universitária recheada de tradições.

 

Uma última dose

Com 58 anos de idade, Zé Luiz já pensa na aposentadoria. Apesar de ter ficado afastado do bar por problemas físicos, ele sabe que o cansaço mental é o que mais dificulta. “É difícil. A cabeça de quem bebe é muito diferente da sua, o freguês tonto tem razão, o dono do bar não”. Pai de uma filha que escolheu estudar farmácia na cidade de Ouro Preto, diz que assim que a filha se formar, pretende deixar “essa vida para lá”.

Já Hamilton Vieira não pensa em parar tão cedo. Aos 37 anos, já geriu outros bares na vida, mas é com o Barteliê que enxerga todo potencial cultural e turístico de São João del-Rei.  “Eu sempre tive intenção de montar um bar que juntasse cultura e arte, na qual também promovesse o turismo na cidade. E é isso que estamos conseguindo!”

Seu Roberto e Dona Carminha também pretendem continuar com o bar, e têm planos de fazer uma reforma para dar uma melhorada ainda mais no espaço, que está crescendo, para atender a todos da melhor maneira possível.

Zé Luiz, Hamilton, Seu Roberto e Dona Carminha já são figuras carimbadas da vida boêmia de São João del-Rei, e dessa vida é difícil tomar um último gole.

 

*Alunas do 6° período do curso de Comunicação Social da UFSJ, pela orientação da professora Najla Passos.

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