Cores e cantos, pontos e encantos que vieram de lá


Artigo

Larissa Ibúmi Moreira*0

fotoCongadeiro Rael desde pequeno já participa do congado (foto Larissa Ibúmi)

“Que navio é esse que chegou agora

É navio negreiro com o povo de Angola.”

 

Na porta da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, o capitão do terno de Moçambique de Passa Tempo para e reza o ponto “Hosana”, que diz: “Eu cheguei na porta da igreja, vi os santos todos no altar. Eu peguei minha ‘chibumba’ na mão, todo mundo ajoelha a rezar.” Segundo o congadeiro Willian Fernandes, essa cantiga é um ponto cantado para se derrubar “demanda”; demandas são ataques espirituais ou uma concentração de energia negativa sobre uma pessoa ou lugar. Já “chibumba” é o bastão utilizado para vencer a demanda, palavra de etnologia banto (derivado de povos do complexo linguístico Congo, Angola e Moçambique, especialmente), que pode ser uma derivação do termo “Chibamba”, da língua nhungue, de Moçambique, que significa “velho” ou uma entidade fantástica presente na tradição popular mineira e que poderíamos entender como os pretos velhos. Os bastões também representam os pretos velhos.

Nas cantigas do Congado, podemos encontrar outras palavras de origem banto, como “ngoma”, que está presente no ponto “Tava drumindo, ngoma me chamou. Acorda nêgo, cativeiro já acabou”. Ngoma é tambor, do dialeto quimbundo de Angola. Sem falar das gungas, os guizos (ou latas) usados nas pernas dos congadeiros de Moçambique, afinados com o repique dos sinos tocados historicamente pelos “gunga-muxixe” e que representam uma sonoridade de matriz africana.

Assim como os negros sequestrados para servir à escravidão atlântica foram divididos em nações de acordo com seus portos de origem, como “congos, angolas, nagôs, minas etc.”, os ternos de Congado também possuem sua especificidade; temos Moçambiques, geralmente vestidos de azul e branco com toques mais lentos e uso de guizos; Catupés, que representam as lutas contra os invasores portugueses ou mouros; os Congos, com toques mais rápidos e vestimentas mais coloridas; os Marujos e Marinheiros, representando os caboclos com o uso de cocares ou penas nas coroas.

O mito de criação do Congado, reproduzido por diversos congadeiros, é o de que alguns negros escravizados encontraram no rio, sobre uma pedra ou numa gruta, a Nossa Senhora do Rosário. Foram avisar ao padre, que logo construiu uma capela para guardá-la. No entanto, ele guardava em um dia; no outro, a Nossa Senhora voltava para o rio. Assim, os negros, vestidos nos trajes dos Moçambiques, levaram as gungas e os tambores e só assim conseguiram levar a santa de vez para a capela, tornando-a a protetora de todos os negros que sofriam as agruras da escravidão. Até hoje, o terno de Congo vai à frente e o de Moçambique é que fecha a procissão, representando, com os saiotes, as gungas, os brincos e torsos na cabeça, a “África”, os mais velhos, a ancestralidade. Suas vestimentas lembram as dos Ngangas de Congo e Angola, sacerdotes dotados de poderes de comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos, o sagrado e o profano. Os bastões usados pelos capitães do terno são ferramentas de comunicação entre os dois mundos e sempre devidamente sacralizados com ervas, patuás ou outros fundamentos.

O Congado é a síntese do que se chama “Catolicismo Negro”. Quando os reinos de Congo e Angola foram catequizados, isso não ocorreu de forma imposta. A adoção dos símbolos cristãos significou uma extensão do poder espiritual que aqueles povos já detinham. Passaram a usar a cruz, símbolo previamente importante para a filosofia banto, como patuás e instrumento de poder espiritual e ressignificaram os santos católicos à maneira africana de cultuá-los. O que alguns costumam entender como sincretismo é a síntese de culturas diferentes que gerou reelaborações internas de signos e significados. Traduzindo, a Nossa Senhora do Rosário cultuada nos Congados, é uma santa já africanizada desde que os povos bantos, que já haviam reelaborado o catolicismo, chegaram por aqui.

O Congado é uma representação dramática dos antigos cortejos das embaixadas dos reis do Congo e foi fundamental na criação de irmandades religiosas que eram espaços onde os negros escravizados ou libertos podiam se organizar politicamente e criar redes de solidariedade. Mais do que isso, o Congado é fundamento ritual, tem a função de curar, limpar espiritualmente por onde seu cortejo passa, abrandar as “demandas” e reverenciar a santa padroeira dos negros, além de São Benedito, Santa Efigênia e Divino Espírito Santo. Congado é o culto à ancestralidade, às matrizes africanas; é o momento em que os tambores são permitidos na igreja e que a população negra, com sua história e tradição, toma a centralidade. Que possamos entendê-lo em sua complexidade como algo que veio de lá, da outra margem do Oceano Atlântico, e que, especialmente, tem cor. Uma formulação africana do culto à Nossa Senhora do Rosário à sua maneira e com seus próprios encantos. Viva o Rosário dos Pretos!

 

*Mestre em História pela UFSJ.

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