Há sete anos que, na freguesia portuguesa de Lourosa (município de Santa Maria da Feira), é proibido o uso de celulares (telemóveis para os portugueses) na escola básica (5º ao 9º ano), sede do agrupamento de escolas Antônio Alves Amorim (AAA). Foi a primeira escola pública portuguesa a adotar esse critério e os resultados são visíveis, tanto no desempenho acadêmico por parte dos alunos quanto na volta do burburinho ao intervalo (fila do almoço e recreio).
O agrupamento de escolas AAA (1.500 alunos dos 3 aos 14 anos) abrange três freguesias: Lourosa (a única que tem escola básica de 2º e 3º ciclo: a EB2/3), Mozelos e São João de Ver. No caso de Lourosa, há outras duas escolas restritas ao 1º ciclo do ensino básico e ao jardim de infância (EBJI). Na EBJI, os alunos (entre 3 e 9 anos) não usam celulares (smartphones) porque os pais não têm o costume de fornecê-los. Daí, a importância da medida adotada para os alunos da EB2/3 (de 9/10 aos 14 anos) e que foi tomada com a concordância dos pais.
A EB2/3 de Lourosa surgiu em 1978, sendo anterior à constituição do próprio agrupamento de escolas AAA. Atualmente, possui 650 alunos do 5º ao 9º ano, justamente aqueles contemplados pela medida introduzida em 2017. “A escola é a pioneira no país a adotar essa medida”, ressalta a diretora do agrupamento, Mônica Almeida. “Os alunos não podem usar o telemóvel no espaço escolar, a não ser para fins pedagógicos. Ou seja, é permitido quando o professor precisa do telemóvel como recurso educativo.”
O primeiro professor a ter aulas com a turma recolhe os celulares numa caixa que fica guardada no armário. O último professor a ter aulas com a mesma turma devolve os aparelhos. “Mesmo tendo atividades extra-curriculares, os alunos deixam os telemóveis na caixa, recolhendo-os só quando vão embora”, explica Almeida. “O professor comunica, via caderneta (comunicação entre escola e família), que irá usar na sua aula o telemóvel como recurso pedagógico.”
Isso não impede a comunicação entre os alunos e seus pais ou “encarregados de educação” (podem ser avós ou outros familiares com quem habitam), conta Almeida. “Os pais podem sempre ligar para a escola a qualquer hora para dar recado aos seus educandos. E os alunos podem ligar para os seus pais sempre que for pertinente, sem que lhes seja cobrado qualquer valor.”
As razões
A constatação de que os alunos não conviviam uns com os outros levou o Conselho Pedagógico (composto por coordenadores dos vários departamentos da escola) a considerarem que alguma coisa precisava ser feita, lembra Almeida. “Os nossos intervalos era muito silenciosos, o que não é normal nestas faixas etárias. Os alunos passavam muito tempo ao telemóvel, isolados, não interagindo uns com os outros.”
Esse comportamento contrariava a visão do Conselho Pedagógico, que considerava a socialização primordial para a aprendizagem, diz Almeida.
“É a partir daí que os alunos formam o seu conhecimento e se desenvolvem socioemocionalmente. Nós consideramos muito importante essa interação porque, mesmo quando há conflito, eles têm que ter a capacidade de resolvê-los cara a cara. Isso faz parte do desenvolvimento humano.”
Depois de passar pelo Conselho Pedagógico, a medida teve de ser aprovada pelo Conselho Geral (onde estão representados professores, pessoal não-docente, pais e entidades das três freguesias que formam o agrupamento de escolas, como juntas de freguesia e associações locais).
Nesse período de sete anos, a escola fez vários investimentos para melhorar os espaços exteriores de forma que se tornassem atrativos para brincadeiras e jogos. Assim, construiu três campos (um de grama ou relva sintética e dois de futebol normais); dois campos de basquetebol; um campo de voleibol e mesas de tênis de mesa e de matreco (jogo de futebol de mesa).
Benefícios
Um dos principais resultados dessa medida foi a reinvenção de brincadeiras antigas por parte dos alunos, assinala Almeida. “Eles trouxeram de volta brincadeiras do tempo dos pais, como salto a corda, jogo do elástico e telefone estragado (ou ‘WhatsApp ao ouvido’).”
Outra conquista foi potenciar as atividades físicas e os esportes numa época em que as crianças se tornaram mais sedentárias. “Essa medida contribui para que eles se mexam mais; é uma medida que contribui para a sua saúde plena”, observa Almeida.
Um efeito indireto foi a participação do aluno Eduardo Pinheiro na World School Sport Games, de 19 a 27 de agosto no Rio de Janeiro, representando o desporto escolar de Portugal. O aluno conseguiu o 5º lugar na classificação mundial de tênis de mesa.
Nas reuniões regulares da direção com os delegados de turma para discutir o cotidiano da escola, constata-se que há mais amizade entre alunos tanto da própria turma quanto de outras turmas e mesmo de outros anos, diz Almeida.
Nos inquéritos sobre o ambiente escolar, concluiu-se que mais de 90% dos alunos dizem ser mais felizes na escola, estão mais concentrados e apresentam níveis residuais de ansiedade. E, nos inquéritos elaborados para a comunidade em geral, pais e professores admitiram que a medida foi benéfica para o desenvolvimento psico-socioemocional dos alunos.
Segundo Almeida, na pandemia de Covid-19, verificaram-se duas situações decorrentes do fato de os alunos passarem muito tempo “agarrados aos eclãs (telas)”: alguns alunos revelaram dependência da Internet (uma espécie de “adição”), conforme relato de pais; e os alunos em geral voltaram com “sede de brincar, de estar com os amigos, de se interagirem”. Um inquérito sobre o ambiente escolar pós-pandemia mostrou que quase 100% dos alunos se sentiam mais felizes com o retorno à escola, numa espécie de volta à normalidade.
A aluna Maria Rita Canedo, que cursa o 9º ano e está na escola desde o 5º ano, acredita que, sem o celular, os alunos se comunicam mais e evitam distração durante a aula. Além disso, a ausência do celular exige que os alunos tenham mais criatividade para se divertirem durante o intervalo. Maria Rita conta que seus colegas de outras escolas dizem que “achariam bastante estranho se não pudessem usar o telemóvel”.
É o caso de Maria Alves da Silva, também cursando o 9º ano. Ela estudou até o 8º ano no Agrupamento de Escolas Coelho e Castro, da freguesia de Fiães, também em Santa Maria da Feira, mas, por falta de vaga e por ficar mais perto de casa transferiu-se para a EB2/3 de Lourosa. Quando chegou à escola pela primeira vez, a funcionária da secretaria pediu para ela entregar o celular. “Fiquei mucado asssustada”, admite Maria Alves. Mas depois se acostumou com a medida e hoje acha normal.
Escolas e associações de pais do território continental e das ilhas (Açores e Madeira), bem como a comunicação social, tem procurado Mônica Almeida em busca de informações sobre a experiência da Escola AAA. Além disso, ela tem participado de podcasts e debates sobre o assunto com pais e especialistas como psico-pedagogos, psicólogos e professores. Foi durante podcast do jornalista Daniel Oliveira (3 de julho de 2023) que Almeida conheceu Mônica Pereira, autora da petição “VIVER o recreio escolar, sem ecrãs de smartphones”
Petição popular
No início do ano letivo de 2022-2023, Mônica Pereira, de Lisboa, ouviu de seus amigos que os filhos, que acabavam de ingressar no 5º ano (2º ciclo), diziam não brincar mais na escola. Mãe de uma aluna que cursava o 1º ciclo, ela percebeu que havia um problema e que muita gente estava preocupada com ele. Começou a pesquisar o assunto e descobriu que muitas escolas particulares estavam proibindo o uso de celular (telemóvel) no 2º e 3º ciclo; e que na freguesia de Lourosa* havia uma escola pública que adotara a mesma medida.
A petição foi lançada, em maio de deste ano, justamente para aprofundar essa discussão que Pereira percebeu ir além das simples brincadeiras no recreio da escola. A petição pública “VIVER o recreio escolar, sem ecrãs de smartphones” pede a “revisão do atual estatuto do aluno quanto ao uso de telemóveis smartphones nas escolas, a partir do 2º ciclo, em prol da socialização das crianças nos recreios. Para que socializem, conversem cara-a-cara e brinquem. Para que os casos de cyberbulling e contacto com conteúdos impróprios para a sua idade diminuam”.
“Numa altura em que vários países e algumas escolas em Portugal já avançaram com a tomada de decisão de proibir a utilização de telemóveis nas escolas, quer em espaços letivos, como em espaços não letivos, os cidadãos abaixo assinados, apelam ao debate, com a finalidade de se rever o atual estatuto do aluno, onde nos parece faltar sensibilidade e coerência sobre o tema.
“Na transição do 4º ano do 1º ciclo, para o 5º ano, do 2º ciclo (9 /10 anos), as crianças ainda precisam de brincar, querem correr e jogar à bola no recreio. Ao brincar, junta-se a questão da integração. Esta é uma fase em que a maioria das crianças irá para uma escola nova, vai ter muitos professores e todo um mundo novo para descobrir.
“É nesta fase de mudança que se reforçam e criam novos laços de amizade, tão importantes na criação de relações de confiança entre pares. Deve ser prioridade estimular e fomentar a interação verdadeira, cara-a-cara, para que as crianças possam demonstrar as suas emoções através de expressões faciais e não através de um ecrã.
Consideramos que permitir a utilização de telemóveis nos recreios está a alterar os padrões de socialização das crianças e a sua integração de forma saudável.
Assim sendo, os signatários da petição propõem:
“Que as escolas estejam equipadas com caixas, cacifos ou armário próprio onde, à primeira hora, os telemóveis sejam guardados e que, no final da última hora, os alunos os recolham. Desta forma, os alunos continuam a poder contactar ou ser contactados pelos pais quando chegam à escola e passam a poder fazer atividades de recreio, mas sem utilizar o telemóvel.
Até a data de 21/11/2023, haviam assinado a petição online 21.919 pessoas. Tendo ultrapassado largamente o número de assinaturas necessário, a petição encontra-se em tramitação na Assembleia da República (equivalente ao Congresso Nacional brasileiro).
*Atualmente, outras escolas públicas portuguesas já adotam a medida, como a Escola Básica Integrada (EBI) de Fragoso, no concelho de Barcelos; as escolas básicas do Agrupamento de Escolas de Miraflores, em Oeiras; e o Agrupamento de Escolas Gil Vicente, em Lisboa.
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