Não quero mais debater, você está cancelado!


Jl e Você

Ariel Campos Pinto 0

Hoje, século XXI, estamos às voltas com críticas que já eram feitas nos primórdios da democracia: Quem são os cidadãos? Quais são seus direitos e deveres? E, principalmente, qual a sua legitimidade? Fato é que a democracia é construída tijolo a tijolo sobre o debate político, então mesmo a ideia de cidadania deve ser posta em cheque e reinvestida de reflexão. Porém, o que se faz, muito presente hoje, é a inserção desse debate, que devia ser plural, numa posição apolítica representante do não diálogo entre as partes, do final da ideia de projeção pelo diálogo e da consolidação do momento presente: o cancelamento social/virtual e a polarização política.

O cancelamento, antes da polarização, é mais apreensível aos nossos olhos. É muito comum ver na internet e nas redes sociais pessoas sendo “canceladas” por algo que disseram ou fizeram. No fundo, é a reputação e a legitimidade dessas pessoas que estão sendo cancelados. No momento em que o cancelamento é solicitado e exigido, o que se mostra é a forma e a qualidade da crítica acerca da cidadania como algo que não é mantido no nível da ideia e da possibilidade, mas do ataque a pessoas. Mas pergunto: por que alguém deve ser cancelado por algo que disse? Não estou dizendo que racistas, homofóbicos e assediadores não devam pagar por seus crimes, muito menos que não devamos nos indignar com crimes horrendos e ações que vão explicitamente contra a vida. Mas eu me pergunto se realmente é papel da comunidade excluir essas pessoas do debate político na sociedade e de seus lugares como cidadãos. Pois, enquanto cidadãos, pessoas que cometem crimes devem pagar de forma proporcional aos delitos, o que implica numa ação judicial de enfrentamento.

O meu ponto aqui é o seguinte: um criminoso é um cidadão? Afirmo que sim, e fazendo parte de uma determinada sociedade deve pagar por aquilo que cometeu, de acordo com as leis daquela sociedade. Como disse Aristóteles no século III a.C.: “É evidente que mesmo homens que receberam ilegitimamente o título de cidadãos devem ser considerados cidadãos”. A partir do momento em que esse cidadão é excluído do debate político por meio de um movimento popular de cancelamento é vetada a possibilidade de que no enfrentamento entre a inocência e a culpa penal algo seja construído em prol do futuro e da vida (o cárcere e outras medidas de retratação e punição visam a reestruturação da parte lesada da sociedade). Neste momento o que foi instalado é a polarização política, que assim como na física cuja polaridade têm a ver com a atribuição de valores positivos e negativos à matéria, ocorre o mesmo nas relações sociais, em que um grupo político sempre atribuirá valores positivos a seu grupo e negativo ao outro, que por consequência é visto como “rival”. É instaurado um clima de guerra dentro do debate político que se difere qualitativamente do embate necessário para o desenvolvimento saudável das pautas sociais, culminando em governos autoritários e distanciados da população.

A meu ver é o que se configura no nosso atual cenário político brasileiro em que Bolsonaro é presidente. As forças do governo bolsonarista se encontram na polarização da sociedade e dos cidadãos, há aqueles que acreditam cegamente no que o presidente tem a dizer – discurso de ódio e exclusão – e há aqueles que tentam a partir de uma outra perspectiva política distanciada do extremismo ideológico reagir a isso. A partir daí, o embate deixou de ser político e passou a ser baseado nas paixões, movimento que muito mais cega do que permite visão. Mesmo Bolsonaro, em toda sua indigestão e incompetência, deve ser chamado de cidadão. Um cidadão baixo e de pouca honra, mentiroso e manipulador, mas um cidadão. Isso envolve trazer de volta à sociedade o sentimento de responsabilidade pelas ações governamentais, entender que o motivo para a presidência se encontrar no estado que está vai muito além do simples voto da maioria votante da população, que mesmo aqueles que não votaram na chapa são responsáveis pela ascensão autoritária e obscurantista que se encontra no nosso país, pois estamos todos polarizados e por consequência cancelados. Lembro-me perfeitamente do período de 2015/2016 como o discurso do “politicamente correto” ganhava força, e como Bolsonaro era visto por muitas pessoas – principalmente na internet – como uma pessoa burra, cômica e inofensiva. Até onde o cancelamento da figura autoritária de Jair Bolsonaro nos levou? Bolsonaro é cidadão e tem de pagar por seus crimes em sociedade.

Para finalizar, trago aqui uma matéria do jornal Brasil de Fato, intitulada “Em ‘Carta ao Povo de Deus’, 152 bispos criticam ‘incapacidade’ de Jair Bolsonaro” publicada na data de 27/07/2020. O jornal contextualiza uma carta enviada pelos bispos da CNBB (Conferência Nacional de Bispos do Brasil) ao Papa Francisco e a publicam na íntegra. Essa carta vem como apelo ao diálogo, e por diversas vezes cita a falta de gestão do governo e a forte manipulação exercida sobre a população como meio para limitar o espaço dialógico e de construção democrática. Os bispos buscam um olhar mais cuidadoso com a política e trazem à tona ações governamentais que vão contra o ideal dos direitos humanos e da boa convivência. A carta antes de ser cristã é cidadã e está atenta aos movimentos maléficos da polarização política. Sobre isso, dizem em determinado momento que “até a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário”.

A polarização aparece como fenômeno capaz de afastar pessoas, de nos transformar em inimigos. Nada é mais perigoso para a política e para nós cidadãos do que um estado polarizado que não consegue definir suas diretrizes de ações, pois, não nos vê como atuantes no governo e na sociedade. Lembremos de 1964 em que o golpe militar aparece como revolução e conta com algum apoio popular e da elite a fim de evitar uma suposta tomada do poder pelos comunistas. Um recorte histórico definitivamente polarizado e que terminou com a morte e desaparecimento de centenas de pessoas, além da tortura de milhares. O diálogo é a via primeira e segura para o bom andamento da política e é somente a partir dele que melhorias podem ser criadas para a população, a partir de políticas públicas e programas sociais, ouvindo-se lideranças comunitárias e conversando com políticos preocupados com o bem-estar social; vetores necessários para uma nova apreensão dessa realidade tão distorcida que nos encontramos.

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