“Se dissermos às pessoas grandes: ‘Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado...’, elas não conseguem, de modo nenhum, fazer uma ideia da casa. É preciso dizer-lhes: ‘Vi uma casa de seiscentos mil réis’. Então elas exclamam: ‘Que beleza!’. Assim, se a gente lhes disser: ‘A prova de que o principezinho existia é que ele era encantador, que ele ria, e que ele queria um carneiro. Quando alguém quer um carneiro, é porque existe’, elas pouco se importarão e nos chamarão de criança! Mas se dissermos: ‘O planeta de onde ele vinha é o asteroide B612’, ficarão inteiramente convencidas e não amolarão com perguntas. Elassão assim mesmo. Épreciso não lhes querer mal por isso. As crianças devem ser muito tolerantes com as pessoas grandes”.
No dia 06 de abril de 1943, essa voz se dava ao mundo. Era a voz narrativa de Antoine de Saint-Exupéry no livro Le Petit Prince ou O Pequeno Príncipe, saída simultaneamente em inglês e francês.
Com lirismo e simplicidade, o livro já foi traduzido para diversos idiomas e é um dos mais lidos do Brasil. E, como toda boa literatura, é lido por leitores de todas as idades, a despeito de ser classificado como literatura infantil.Trata-se de obra que conquistou e conquista gerações há oitenta anos e que é sempre nova no que diz e na forma como diz. Uma criança octogenária dizendo maravilhas, lindas e doridas. Na simplicidade da linguagem do livro e no seu canto à amizade, ao amor e à essência o que encontramos é poesia densa. O que vemos é fábula e enredo a serviço de uma abordagem profunda e dolorosa da vida.
As palavras e as aquarelas do autor vieram para nos dizer de um pequeno príncipe chegado à Terra e das relações de afeto entre o garoto e o narrador, piloto de avião perdido no deserto do Saara após uma pane em sua aeronave. Se no deserto existem oásis, na narrativa enternecida, triste e alegre de Exupéry os bálsamos também existem, mas trazem consigo não apenas a água que mata a sede e sim também a própria sede que nos atravessa. Na beleza do livro, a dor também tem asua vez.
O volume aborda temas como a infância e a sua criatividade, a vaidade, o orgulho, o autoritarismo, a amizade, os afetos, a dor, a perda, a solidão, a saudade, a morte etc. – enfim, a existência e sua multiplicidade.
Entre abordagens possíveis, podemos sentir no livro o poder do fabular, a fabulação antes de tudo criativa que pode nos fazer encarar a vida e poetizá-la. Poetizar a existência não é simplesmente enfeitá-la, porque a beleza oferecida pela arte se trata de um constructo que nos diz das difíceis coisas da existência.Crianças, jovens e adultos vivem e existem a realidade. Portanto, não existe, na maior fantasia que se construa, a possibilidade de um desligamento total dessa realidade.
O caráter efêmero da vida e a morte, do mesmo modo que atravessam as relações humanas, fazem sombra sobre o narrador-piloto e o seu Pequeno Príncipe. O garoto interage com sua pequena flor em seu asteroide. Interage com os vulcões, com a estrelas, com as pessoas que vai encontrando pelos planetas, com a raposa que lhe dá lição de vida baseada na amizade e nos cuidados que a amizade requer. O menino interatua também com a serpente no deserto, a qual lhe é amiga e lhe oferta, paradoxalmente e caso ele queira, uma mordida,a possibilidade de ele adormecer para o reencontro mais rápido com sua pequena e única flor, porque esta sim sua amiga primeira e eterna. O pequeno, ao fim e ao cabo, aceita a oferta da serpente.
Eis o modo de dizer, poeticamente, dum tema tão delicado para a humanidade: o suicídio. Apesar do peso do assunto abordado, vemos a mestria de Exupéry na construção de afetos, na busca de raízes que nos plantam numa vida tão sem raízes. Após seis anos da partida do menino, o narrador registra: “Agora já me conformei um pouco. Mas não completamente. Tenho certeza de que ele voltou ao seu planeta, pois, ao raiar do dia, não encontrei o seu corpo. Não era um corpo tão pesado assim... E gosto, à noite, de escutar as estrelas. É como ouvir quinhentos milhões de guizos...”.
Uma das lições que construímos na leitura de O Pequeno Príncipe é a de que os homens são vento, pois não têm raízes. Mas eles, os homens, podem fabular e, juntamente com a fabulação, podem tecer pontes entre si, ramificações entrelaçadas de afetos.