Professora Bia aponta “falta de limites” como problema para a educação


Entrevistas

José Venâncio de Resende0

Professora Bia

A professora de matemátiva Maria Beatriz Silva Santos, a Bia, aposenta-se este mês. Bia começou a dar aulas em 1982, em Governador Valadares, e ingressou na Escola Estadual Assis Resende em 1995. Ela recebeu a reportagem do Jornal das Lajes e deu a seguinte entrevista.

JL – Qual é a avaliação que você faz da educação?
Bia – Uma coisa que acontece - não só na educação – é que “eu não tive, meu filho vai ter”... Com isso, está liberado de mais da conta para essa adolescência, para esses jovens – para as crianças também porque eu vejo isso no Conjurados. Estão dando demais e pedindo pouco deles. Com isso, eu acho que nós - os professores, os pais - estamos perdendo o fio da meada. E isso acarreta outras coisas piores.

JL – Você disse que é geral...
Bia – Eu acho que a falha é geral. Eu tive professor bravo, e então eu dizia: “Nunca vou ser um professor assim”. Talvez, eu esteja dando demais aos meus alunos e não esteja pedindo pra eles aquele retorno. E os pais também estão indo no mesmo caminho. Tiveram aquela educação muito rígida e agora estão dando tanta liberdade pra esses jovens, e não estão pedindo nada em troca. Com isso, você olha na cara dos meninos e parece que eles estão pedindo: “Me dê limites”. E o governo, por sua vez, está dando tudo e também não está exigindo nada deles.

JL - E qual o impacto na educação?
Bia – Nós temos alunos que chegam ao segundo grau sem saber interpretar um texto. O aluno não sabe interpretar um probleminha para chegar na resposta porque foi tudo mastigado pra ele. Não se ensinou a pesquisar, mas a decorar.

JL – A escola não está ensinando a estudar...
Bia – Está dando tudo pronto pra ele. Nós estamos num processo no qual, se o menino não conseguiu os pontos para passar de ano, nós temos que dar um trabalho para ele já fazer em casa – não pode ser um trabalho difícil, não. Aí tem a recuperação e depois ainda tem uma prova. Quem sabe, ele consegue passar! Então, vem facilitando demais da conta... Eu acho que isso é geral, mas o Assis Resende tem um agravante: Resende Costa cresceu demais e o Assis Resende continuou do mesmíssimo tamanho. Os meninos – os rapazes, as moças - não têm uma quadra. Eles ficam ali. O menino, quando se vê apertado, parece que olha em volta, assim, e pensa: “tenho que aprontar alguma!”. É um modo de chamar a atenção. O espaço está tão pouco que ele se vê oprimido. E quando a pessoa está sem saber o que fazer inventa bobagem.

JL – E tem a superlotação...
Bia – E você está andando na sala, tem os buracos. Você tem que andar com cuidado, senão você cai lá embaixo no porão. Desde que eu estou aqui, a única reforma feita aumentou a secretaria, aumentou duas salinhas lá, mas continuou naquele mesmo lugar. E a prefeitura tem tantos lotes. Por que o governo estadual não entra em acordo com a prefeitura para fazer uma nova escola para Resende Costa? Já passou da hora.

JL – Você continua fazendo classificação dos alunos por notas, mas isso hoje não é considerado antipedagógico?
Bia – Eu dou chocolate (risos). Eu acho que a gente tem que prestigiar aquele que quer, e não ficar passando a mão na cabeça dos que não querem...

JL – Não virou um processo de nivelar por baixo?
Bia – Você não pode nem falar “meu filho, acorde para a vida”, porque você estaria violentando o menino.

JL – Como é a reação dos alunos a essa classificação?
Bia – Uns costumam falar: “Um dia ainda hei de ganhar um chocolate”. Outros agem - e eu fico até meio pasma - como se não estivesse acontecendo nada. E outros dizem: “Se eu quiser chocolate, compro um igualzinho ali na esquina”. Então eu digo: “Você pode comprar 500 iguaizinhos, mas você não vai ter o sabor de ter vencido uma batalha, que é fazer uma prova e tirar os melhores pontos”. Olhe, a gente está passando por um pedaço. O Tião Melo costuma dizer: “Se eu morrer e voltar, eu vou ser professor novamente”. E eu falo: “Eu não caio nessa burrice nunca mais”. Eu já gostei muito, vibrava muito. Tenho a sensação de dever cumprido, mas uma desilusão tão grande que eu não vou voltar a ser professora nunca mais. Eu até brinquei com os meninos: “Vocês não batam a campainha lá em casa pra pedir aula particular. Vou até por um cachorro feroz lá para ele abocanhar vocês”. E acho que, se você fizer uma pesquisa, vai notar um descontentamento geral, infelizmente.

JL – Que extrapola as paredes da escola...
Bia – Olhe, fora da escola, você vê por aí, à noite, que essa moçada está bebendo demais. E cedo demais da conta. Não apenas por falta de limite, mas também por falta de lazer... Não tem um teatro, não tem um cinema pra eles. Então, eles vão para o bar beber. Eles não têm como se extravasar. Essa juventude não tem o que fazer. Aí, quando junta uma turma, é pra beber. Eu estou muito preocupada com tudo. E fico triste porque eu não queria que fosse assim, acho que ninguém quer que seja assim. E, quando a gente faz uma reunião, chama os alunos para conversar.

JL – Essa reunião envolve quem?
Bia – Envolve a supervisora (a pedagoga), os pais, os alunos e os professores que estiverem disponíveis.

JL – E nessas reuniões gerais, como é a postura dos pais?
Bia – Falam pouco, não são de falar. Querem nota. O que interessa pra eles é o boletim estar azul.

JL – Não interessa se o filho aprendeu?
Bia – Não interessa. Os pais que vão (à reunião) costumam ser aqueles pais de alunos dos quais a gente não tem que ficar chamando a atenção. E os que precisam não vão de jeito nenhum. E quando vão à escola é para brigar. O objetivo é ou brigar com o professor ou brigar com algum colega que ofendeu o filho. E no final do ano, na hora em que vê a coisa feia, aí aparece. E é talvez na hora em que já não tem jeito de você fazer mais nada para o aluno.

JL – E pressiona o professor?
Bia – Pressiona, bate campainha na casa da gente. “Por que aconteceu isso?” “Por que aconteceu aquilo?” “Mas por que você não me falou durante o ano o que estava acontecendo? Agora, no final do ano, é que você vem me falar?” “Porque eu esqueci...”

JL – A política educacional contribui para agravar a “falta de limites”?
Bia – O Estado de Minas Gerais é ainda considerado um dos melhores, ou seja, a educação está lá em cima... Mas a gente está vendo que não está. Na quinta série, por exemplo, nós temos alunos que não sabem ler, não fazem conta nenhuma, nem escrevem nada. São analfabetos de tudo. Vêm vindo empurrados... Aí a pedagoga, quando tem tempo, leva o menino para a sala e tenta alfabetizar, mas ela não tem tempo pra isso, tem outros serviços pra fazer.

JL – E como você vê a ação do Conselho Tutelar?
Bia – Olhe, eu não estou criticando, mas eu acho que a pessoa não tem talvez uma base assim para pegar um serviço desse. Na hora que abre a inscrição para se candidatar ao Conselho Tutelar, a pessoa tem que ter segundo grau. Agora, ela sabe conversar com as pessoas sobre assuntos delicados, como um estupro, menino sendo assediado por gente de dentro da família? Não sei. A pessoa teria que ter uma base boa de psicologia porque está mexendo com problemas graves. Aqui em Resende Costa a maioria é até aluno da gente – não sei se tem capacidade para poder trabalhar nisso. Então, não sei se o pessoal que está entrando ali tem capacidade pra isso. E eu nunca ouvi falar: “Antes de ser candidato ao Conselho Tutelar, você vai passar por uma capacitação”.

JL – Como isso reflete nos problemas da escola?
Bia – Evita-se até chamar o Conselho Tutelar porque costuma não resolver nada.

JL – Como você age frente a problemas de indisciplina?
Bia – Tem muito tempo que eu não mando um menino para a direção da escola resolver. Agora, eu não tenho problemas graves de indisciplina e, quando eu tenho, eu mesmo resolvo. O que eu tiver de dizer, eu digo: “Vem cá, vamos conversar aqui agora. Você está assim e assado. Vai continuar assim? Está bom pra você assim?” Agora, se eu levo o menino para a direção. “Bia, nós não podemos fazer nada”. Chamar o Conselho Tutelar porque o menino é indisciplinado, está falando nomes horríveis na sala de aula, coisa que talvez até ele escutou em casa? Pra que? Vou perder o meu tempo? Mas nem todo mundo, infelizmente, teria esse jogo de cintura.

JL – Não há uma confusão de conceitos? Por exemplo, entre igualdade e oportunidades iguais? Querem nivelar por baixo, quando alguns sempre vão evoluir mais do que outros...
Bia – E talvez por nivelar por baixo, os que poderiam avançar mais estão sendo sacrificados. E ninguém está olhando isso. A gente não está dando tarefas para aquele que tem mais condições de desenvolver melhor porque aquele outro não consegue fazer. Você dá oportunidades iguais pra todos, porém uns sempre vão avançar mais que outros. Isso é velho. Não sei se tem que avançar igual, não.

JL – Aí voltamos à questão do mérito...
Bia – E tem que ter. Na sala de aula, na escola, a gente nivela por baixo. E na hora em que ele sair na rua? Vai fazer um concurso? Quem fizer mais pontos é que leva. Então, a gente não está preparando para a vida. E esse lado poucos olham.

JL – E tem o problema da inversão total de valores. A pessoa bem-sucedida é aquela esperta que leva vantagem em tudo. Os maus exemplos vêm de cima. Hoje, estudar muito não é garantia de sucesso. Você não acha que vivemos a sociedade do imediatismo?
Bia – Felizmente, ainda existe uma minoria que não pensa assim. Eu ainda sou a favor de uma música que saiu agora: “O ´nerd´ de hoje é o cara rico de amanhã”.

JL – Em resumo, nós temos problemas de ordem mais geral que atingem a educação como um todo...
Bia – Aí eu acho que entra o papel da família. Para mim, a família é tudo.

JL – O Assis Resende faz o acompanhamento do desempenho dos alunos no vestibular, em concursos etc.?
Bia – A gente sempre pediu pra fazer, a gente sempre pergunta: quem passou no vestibular?

JL – Não deveria fazer parte da própria avaliação anual da escola, até como estratégia de ação, de marketing?
Bia – É importante saber quantos alunos passaram, quantos alunos você conseguiu aprovar.