Rogações em tempos de pandemia

Antiga tradição católica surgida na Idade Média como súplica contra a peste e outros males é mantida em sua originalidade em Resende Costa


Religião

André Eustáquio0

Canto das Rogações, em maio deste ano, na igreja matriz de Nossa Senhora da Penha de França (Foto Leticia Resende-Pascom)

A pandemia do novo coronavírus não foi e não será a última peste a atingir a humanidade, que ao longo de séculos viu surgir inúmeros surtos pavorosos de doenças que dizimaram milhares de pessoas. As pestes eram comuns em grandes centros da Europa medieval, como Roma e Paris. A ciência ainda não havia avançado e a população contava com pouquíssimos recursos. Na ausência da ciência e de medicamentos capazes de combater as doenças que proliferavam, a fé era a principal panaceia.

Diz a tradição católica que no século V da cristandade medieval “grandes calamidades públicas traziam alvoroço na Diocese de Viena, mais precisamente em Delfinado (atual França)”. Foi então que o bispo local, São Mamerto, mandou que se fizesse uma procissão de penitência durante os três dias anteriores à festa da Ascensão do Senhor, precisamente quarenta dias após a Páscoa. Acreditava-se, na época, que alguns males como a tempestade, os terremotos, o flagelo da guerra, a fome e a peste eram sinais da ira de Deus que punia a humanidade pecadora.

Esse ritual de penitência e de súplica a Deus manteve-se ao longo dos séculos e chegou até os tempos atuais com o nome de Rogações, ou Ladainha de Todos os Santos. O Concílio Vaticano II (1962-1965), responsável por ações renovadoras na Igreja, entre elas a reforma litúrgica do Missal Romano, confirmou as Rogações como “momento privilegiado para se viver a penitência”.

Pelo que se tem notícias, atualmente poucos lugares ainda preservam o canto das Rogações, sobretudo a sua originalidade na língua latina. Na Diocese de São João del-Rei, somente a Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar e a Paróquia de Nossa Senhora da Penha de França, em Resende Costa, realizam o ritual durante o tríduo da Ascensão do Senhor. Na Catedral do Pilar o texto cantado da Ladainha é em português. Em Resende Costa canta-se em latim.

 

Súplicas

Os fiéis suplicam a Deus, através da intercessão dos santos, que abençoe os bens da terra, a Igreja e livre o povo cristão dos pecados e das calamidades da guerra, da peste, dos terremotos e das tempestades.

Até 2018, a Ladainha era cantada em Resende Costa às 5h e 30min – geralmente sob névoa e frio intenso que cobriam as ruas no alto das Lajes –, seguindo uma antiga tradição sobre a qual não há notícias de quando surgiu na Paróquia de Nossa Senhora da Penha de França.  

O rito original iniciava-se no interior da igreja matriz, de onde partia uma pequena procissão em ritmo um pouco mais acelerado do que o de costume em outras procissões na cidade. A procissão, que não durava mais do que meia hora, retornava à matriz onde era celebrada a Santa Missa.

No entanto, desde 2019, por motivos pastorais, o horário foi alterado para as 18h e 30min. Outra modificação: ao invés de os fiéis saírem em procissão, como tradicionalmente acontecia, as Rogações passaram a ser cantadas somente no interior da igreja matriz. O texto continua sendo o original, com preces evocadas e respondidas em latim.

Neste ano, a Ladainha foi cantada nos dias 21, 22 e 23 de maio (tríduo do Domingo da Ascensão), porém somente com a presença da equipe de celebração no interior da igreja, em cumprimento das normas de distanciamento social em vigor na cidade, devido à pandemia do novo coronavírus. Os fiéis acompanharam as Rogações, a bênção do Santíssimo e a celebração da Santa Missa do tríduo da Ascensão do Senhor através da Rádio Inconfidentes e das redes sociais da paróquia.

 

Atualidade

As Rogações do mês de maio – antiga e piedosa oração penitencial do rito católico – nunca foi tão atual como neste ano em que o mundo inteiro sofre os efeitos da grave pandemia de Covid-19.  

Em excelente artigo publicado na revista Veja do dia 15 de abril último, o teólogo e pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo, Ed René Kivitz, diz com sabedoria e ponderação que “o coronavírus deve ser enfrentado com boa medicina, e a superação da Covid-19 será uma conquista da ciência, mas também é verdadeiro que os suplementos de empatia, solidariedade, compaixão e misericórdia, necessários e heroicamente demonstrados por todos aqueles que se expõem ao risco para prover cuidado aos enfermos e vulneráveis, são qualidades que se encontram no coração dos que creem (ou intuem) que a vida descansa nos mistérios e virtudes do espírito humano e do Espírito divino. Assim é a fé saudável: não se fabrica em laboratórios nem se compra em farmácias.”

Sabemos que a cura da Covid-19 virá da ciência, porém as intempéries que ao longo de séculos colocaram e vêm colocando a humanidade à prova nos mostram o quanto somos frágeis. E a fragilidade da vida humana nos leva a crer, a ter esperança de que algo bom nos acontecerá... e nos salvará.

Podemos chamar isso de fé? Esse mesmo sentimento (fé ou esperança) inspirou São Mamerto, bispo de Viena, a criar as Rogações lá no longínquo século V e ainda reúne cristãos nas igrejas do século XXI para suplicar a Deus que nos livre da peste. A peste que em 2020 tem um nome: Covid-19.

 

A peste, fame et bello, libera nos, Domine! Da peste, da fome e da guerra, Livra-nos, Senhor! ”

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