Um Rio em forma de Orquestra


Artigo

Ivan Alves Filho*0

Há um lirismo extraordinário – eu diria, até: arrebatador – nessa obra para orquestra de Luiz Carlos Prestes Filho e nos poemas que acaba de publicar sobre o Rio de Janeiro, com foco na Praça Quinze, apontada como “o coração da cidade”.  

Com efeito, ali se localizava a antiga Praia da Piaçaba. Foi nessa mítica Praça Quinze que ocorreu a primeira resistência indígena do Rio de Janeiro. O Dia do Fico, ou o lançamento do manifesto fundamental para a obtenção da nossa Independência política, redigido por José Bonifácio, também ocorreu ali. Mais: nessa mesma Praça Quinze o revolucionário baiano Cipriano Barata seria ovacionado pelo povo, após deixar as masmorras da Ilha das Cobras.

E também a Lei Áurea, que consagraria juridicamente a primeira revolução social brasileira, seria assinada na Praça Quinze (afinal, materializava a mudança do modo de produção, iniciando a passagem, ainda que não fosse de forma direta, do escravismo para o capitalismo).

Como se não bastasse, a Praça Quinze homenageia a nossa tão combalida República. E seria ainda palco de movimentos sociais contra a carestia, em meados do século XX. De cortar o fôlego. Eis aqui um mérito incontestável do autor, uma grande percepção sua realmente: a Praça Quinze como palco privilegiado das transformações sociais. Em tempo: acompanha a criação musical um livro igualmente magnífico, pela qualidade dos textos nele estampados, pela amplitude do reexame histórico que propõe, logrando nos esclarecer – e muito – a respeito da ação dos primeiros colonizadores europeus da cidade. Os acontecimentos que marcaram aquela área fundamental do Rio de Janeiro vão sendo pontuados criteriosamente ao longo do livro e isso realmente nos impressiona. Tudo ilustrado, de quebra, por um bamba: Poty Lazarotto, o artista paranaense que o Brasil inteiro aprendeu a admirar.

 

                                         Piaçaba

                                         voltar para o útero

                                         Aimberê

                                         imagem primeira do Rio

 

Trata-se de um passeio pelo Rio de Janeiro dos tempos primeiros, de uma sonoridade que nos envolve, como envolvente é o próprio Rio de Janeiro, esse extremo-Ocidente banhado pelo Atlântico e habitado por um povo insubmisso, desde os índios aimberê.

A abrangência musical é perfeita, incorporando elementos sonoros do barroco, por exemplo, adaptando-se assim às mais diferentes fases artísticas ou momentos culturais que marcaram o Rio de Janeiro. História e Arte entrelaçadas. Um belo encontro.

Um passeio e uma surpresa, também. Apesar de ser amigo do Luiz Carlos, o Carlinhos, há dezenas de anos, e saber de sua ligação com o mundo do samba, eu desconhecia totalmente o seu talento de compositor. Ainda mais de música de concerto. Deliciei-me com sua Piaçaba e Acrescidos, cuja linha melódica nos remete ao que há de mais criativo em nossa música para orquestra. A força telúrica da obra realmente emociona, provoca um impacto no ouvinte. 

Sou historiador de ofício e não possuo formação musical, mas isso não me impede talvez de registrar aqui o quanto esse trabalho me sensibilizou. Terno, comovente, produzido e conduzido da forma mais profissional possível, com arranjos magníficos, essa Piaçaba e Acrescidos se faz acompanhar por questionamentos pertinentes no tocante ao desenvolvimento do Rio de Janeiro. Meu amigo mergulhou fundo na formação da cidade, na alma da cidade, com uma sensibilidade própria, mas também com um conhecimento que poucos possuem sobre a nossa trajetória cultural, a nossa verve criativa. Com isso, o músico-poeta nos legou um Rio antes do Rio, ousaria dizer assim. Ou um Rio dos índios, antes de Estácio de Sá. Pois ali já existia uma cidade. Daí, talvez, o Padre Manoel da Nóbrega ter recomendado ao Infante Dom Henrique “ser muito necessário povoar-se o Rio de Janeiro e fazer-se nele outra cidade” (o grifo é nosso).

O historiador Alessandro Ventura, que contribui para o livro com um texto enriquecedor, não deixaria de observar isso. Muito acertadamente, ele informa que as mudanças que foram ocorrendo no espaço urbano do Rio de Janeiro revelavam as novas funções que a cidade foi adquirindo ao longo dos anos (políticas, mercantis). Em tempo, mais uma vez: o livro está muito bem editado, sendo um verdadeiro prazer manusear suas páginas. 

O compositor-poeta está de parabéns. Digo, sem medo de errar, que raramente ouvi algo tão singelo quanto a composição Gênese do Brasil. Teve sobre mim o mesmo efeito que teve “Bachianas No.5” ou o “Concerto de Aranjuez”. Não, não é lá muito fácil lançar um olhar artístico inovador sobre o Rio de Janeiro, cidade louvada por poetas como Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Geir Campos e Vinícius de Moraes. Berço de compositores da qualidade de Heitor Villa-Lobos, Noel Rosa e Antônio Carlos Jobim. Mas meu amigo conseguiu ser original. Por isso, repito, está de parabéns. Fez um trabalho que honra a cultura brasileira no que ela tem de melhor, subvertendo a nossa sensibilidade musical da mesma maneira que seu pai, o saudoso camarada Prestes, lutou a vida toda para subverter as bases da injusta política nacional, nela imprimindo a marca imorredoura do Cavaleiro da Esperança. 

Cada um, a seu modo, imaginou um mundo para que nele pudéssemos todos viver dignamente, em liberdade e criatividade. 

*Historiador e jornalista. Autor de Memorial dos PalmaresBrasil, 500 anos em documentosA saída pela Democracia e O caminho do Alferes Tiradentes, entre outras obras.

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário