A Teia do Mundo

Estrela de Natal

21 de Dezembro de 2022, por José Antônio 0

Quem disse que estrela não fala? 

Um dia, um poeta confessou que ouvia as estrelas e que as pessoas diriam que ele, por causa disso, teria perdido o senso. Até que é um pouco verdade. Concordo que para falar com as estrelas é necessário perder o senso... mas o senso comum. Aí, sim, você poderá encontrar o bom senso.

Falar com as estrelas... ouvir as estrelas... saber quem elas são. Cada uma traz em si a missão do brilho. Até quando já estão mortas, brilham através dos anos-luz. Estrela da manhã, estrela da tarde, estrela do mar, estrela d’alva, estrela cadente, tanta estrela, meu Deus! É só olhar para o céu que a gente vê que toda hora é a hora da estrela.

E eu? Eu sou uma estrela que está falando com você agora. Sou a Estrela de Natal. Você sempre me vê em cima da gruta dos presépios. Alguns me confundem com cometa. E aí, me colocam aquele rabão colorido. Acabo ficando que nem vaga-lume vestido de noiva. Não sou cometa, sou estrela. Estrela de Natal.

Porém, não sou a Estrela do Natal, pois quem realmente brilha nesse dia não sou eu, e sim o Dono da festa. Eu apareço apenas para dar um toque a mais. Sei que tenho uma certa importância, e isso me envaidece um pouco. Por exemplo, sempre quando fazem a árvore de Natal, eu sou a última a ser colocada, com toda pompa, lá em cima. Quando fazem o presépio, lá estou eu indicando o caminho para os Reis Magos.

Mas a importância que eu realmente quero ter é fazer você perder o senso... o senso comum... o senso comum do Natal.

O senso comum do Natal é amigo oculto, peru assado, vinho, ceia, nozes, sininho tocando, músicas com harpa paraguaia, abraços, trocas de votos de felicidade, presentes, Papai Noel, roupa nova, brindes, falatório, risos... Isso é bom. Isso faz bem. Mas falta algo aí para que o senso comum se transforme em bom senso.

Quando você vai a uma festa de aniversário, você come, bebe, diverte-se usufruindo de tudo aquilo que o aniversariante preparou para os convidados. E o que você diz ao dono da festa? “Parabéns pelo seu aniversário! Adorei! Está tudo ótimo. Demais a festa! Obrigado!”

Pois é... no Natal, o Dono da festa prepara tanta coisa para os convidados, dos quais você faz parte. Prepara a alegria da família reunida, a música da confraternização, a ceia da saúde, o abraço da amizade, o brinde da paz... tanta coisa para você aproveitar nessa noite. E você, como todo convidado, aproveita. Que continue aproveitando!

No entanto, se não for por uma questão de fé, que seja pelo menos por uma questão de etiqueta: já que você foi convidado para uma festa de aniversário, dê os parabéns ao aniversariante. Diga a ele também que está gostando muito do que ele preparou para você. Agradeça pela família reunida, pela confraternização, pela saúde, pelas amizades que você tem, pela paz que se instalou em seu espírito. Faça um brinde de gratidão ao aniversariante. Desse modo, você estará ouvindo uma estrela e quebrando o senso comum para assumir o bom senso.

Só mais uma coisa, caso você já nem se lembre mais: o nome do aniversariante é Jesus. Você o encontrará no lugar e no momento mais simples da festa.

Casei-me com a garota do telemarketing

23 de Novembro de 2022, por José Antônio 0

No começo, até que era divertido. Ele já não precisava mais ficar fantasiando sobre quem estaria do outro lado da linha. Agora, a garota do telemarketing almoçava em sua mesa e dormia em sua cama. Ele tinha uma garota do telemarketing somente pra ele.

O início do conúbio foi casual. Ela ligou e ele atendeu. O papo foi rápido, com ofertas da parte dela e recusas da parte dele. Numa outra vez, a conversa andou um pouco mais. Ele acabou comprando o que ela oferecia.

Do casual, passou pro comercial. Do comercial a coisa descambou pro pessoal, do pessoal pro emocional, do emocional pro sexual, do sexual pro conjugal. E aí, já estavam amarrados um no outro, mesmo sem fio.

Antes de se juntarem, era aquele “Bom dia, senhor!” pelo telefone. Tão maquinal quanto abraço de político. Pois você acredita que, embora estivessem casados e morando juntos, ela não perdia a entonação? Com aquela melodia irritante de quem quer obrigar a comprar qualquer coisa que não é necessária, a garota dizia pra ele todo dia: “Bom dia, senhor!...” “Te amo, senhor!...” “Vem pra cama, senhor!...” “Estou quase lá, senhor!...”

Ele achava isso a coisa mais sexy do mundo.

No Dia dos Namorados ele dava flores pra ela. E era aquela coisa de sempre:

– Obrigado por ter se lembrado, senhor! Assim que possível, estarei dando o retorno, senhor. Palavras e atos amorosos estarão sendo enviados à sua pessoa, senhor. Caso o senhor queira mais carinhos, pode estar solicitando por aqui mesmo. Os meus sentimentos agradecem a sua atenção. Tenha um bom dia, senhor!

Sua musa era a diva do gerundivo. Uma gerundiva!

Porém, não é só formatura de jardim de infância que enjoa: o casamento já começava a dar alguns sinais de desgaste. Ela ainda mantinha aquela entonação de boneca a pilha. No entanto, as frases... “Agora não, senhor!... Estou com dor de cabeça, senhor!... Aguarde um minuto, senhor!...”

Que saco! Se soubesse, teria se casado com uma boneca inflável versão robô.

– Mais alguma dúvida, senhor? 

O negócio ficou insuportável quando, numa noite, ali deitados um ao lado do outro... De repente, rolou um clima. Ele, então, tratou de investir sobre ela:

– Agora não, senhor. No momento, meus canais estão todos ocupados, senhor.

Assim também não! Se os canais dela estavam ocupados, o negócio era tomar cuidados com os ramais dele. Você sabe, ramais, ramagem, galhada, galhos...

Estão separados. Já pensou se o conúbio virasse cornúbio?

A mulher é líquida

25 de Outubro de 2022, por José Antônio 0

Se a humanidade é de barro, o homem é pó e a mulher é líquida.

 

Mulher é água nascente. Forma oceanos e rios dentro de si. Marés e redemoinhos que ameaçam tragar e, ao mesmo tempo, refletem o firmamento.

 

Mulher é água de chuva. Revela apenas a cortina das nuvens... mas fica com os segredos do céu.

 

Mulher é água de lágrima. Às vezes doce... quando se encanta; às vezes ácida... quando argumenta; às vezes inebriante... quando se permite; às vezes amarga... quando agredida.

 

Mulher é líquida no sangue que flui, mostrando que ela pode gerar. Mas mulher também é líquida no sangue que borbulha, fervendo a revolta de milhares delas assassinadas, estupradas, esbofeteadas... Mulher é líquida nesse hematoma social, pois é sangue que não coagula: invade nossas veias e artérias numa transfusão que clama por justiça e respeito.

 

Mulher é líquida no leite que sustenta. Seios inesgotáveis que não deixam a humanidade perecer. Seios que mantêm a temperatura e o equilíbrio de seu leite na energia constante e mágica de um coração que pulsa bem perto deles.

 

Mulher é líquida no suor que sai de seus poros na luta para se manter, na luta para educar, na luta contra o preconceito, na luta para a conquista de seu lugar, na luta contra o desrespeito, na luta contra o luto.

 

Mulher escorre, percorre, concorre, socorre, discorre, recorre... Mulher só não corre... da raia.

 

Por sua natureza, a mulher consegue ser gasosa, sólida e líquida. Gasosa, quando algo não lhe interessa mais. Ela vira vapor e desaparece como bruma que se esvai. Sólida, quando seus sentimentos são traídos e ela se condensa toda no bloco resistente de sua dignidade. Líquida, pois, sem ela, nós homens seríamos a triste areia da ampulheta, que se distrai monotonamente com a sua própria secura.

Canção de amor

21 de Setembro de 2022, por José Antônio 0

Foi uma canção simples, poucos acordes. Nela couberam os sonhos que mais doem, aqueles que são sonhados sabendo que serão sempre sonhos. Sussurros doces e sádicos que toda ilusão sibila do jeito que só ela sabe fazer.

Como toda garota que se assusta com uma alegria inesperada, teu coração saltou do peito para dançar nos olhos. E aceitaste a canção que te ofertei. E sorriste. E foste para casa levando a certeza de que a primavera fora criada somente para ti. E foste.

O tempo passou, os dias não ficaram.

De tanto cantar, acabei decorando aquela canção, assim como decorei cada centímetro de tua lembrança. Cantei para contar... para contar a mim mesmo que é possível imorrer as coisas que não vivem mais.

Aos poucos, as circunstâncias nos levaram para trilhas diferentes. De longe, ainda pude te ver algumas vezes; não perto, pude ouvir em raros momentos a tua voz.

Os teus encantamentos já eram por outros motivos. Tuas alegrias de menina sapeca não eram mais para a minha canção. Em teu jorro de vida, eu não navegava mais.

Eras outra.

Muitas outras noites e dias vieram, fazendo do calendário uma constelação formada por estrelas de fumaça que se apagam com o sopro do inevitável.

A noite estava fria, era noite de inverno, igual àquelas em que tantas vezes conversamos e rimos, loucos para o dia seguinte chegar rapidinho para de novo nos vermos. Foi numa noite de inverno. Do meu discreto lugar, convidado sem muita importância, observei-te subir para o altar. Deslumbrante noiva!

O mesmo olhar daqueles tempos, o mesmo sorriso das tuas alegrias.

Caminhavas feliz para o teu par.

E o meu par de olhos sem par moveu-se para dentro de mim. Uma suave canção impregnava a igreja de emoção e paz. Uma flauta sublimava meu coração em forma de prece que reza o passado.

Na cadência melíflua da flauta, eu me retirei sutilmente, como o instrumento que se cala quando já não mais deve soar na partitura do concerto.  

Eu já estava a alguma distância da igreja, mas ainda podia ouvir, apesar do vento frio, os sons dos acordes da flauta suave que iam sumindo aos poucos.

Silêncio.

Apenas o vento.

Apenas o frio.

Apenas eu.

Cantei baixinho, pela rua solitária, aquela canção que um dia eu fiz e que te entreguei.

Depois não cantei mais.

Ela se despediu e se recolheu... lá onde morrem as canções de amor.

O trânsito... Sempre o trânsito

17 de Agosto de 2022, por José Antônio 0

Andar a pé é como andar de carro. As calçadas são as rodovias e as pessoas são os automóveis.

Tem gente que é Fusquinha invocado, Fiat Uno apressado ou mesmo Gol turbinado. Franzinas, ágeis e movendo-se sempre com pressa, trafegam com destreza por entre os transeuntes, numa rota obstinada e sinuosa. Passam raspando, reclamam ferozmente da demora de quem para na frente e estão sempre de quinta.

Há também os táxis. São aqueles que andam, param com alguém e saem levando. Adoram uma companhia. Vão aonde o outro vai. Se o cara entra na loja, o táxi também entra; se o cara vai fazer um lanche, o táxi espera a última mastigada do companheiro; se o cara vai ao banco, o táxi o acompanha na fila. Geralmente, os táxis de duas pernas apreciam parar em encruzilhadas, no momento em que o passageiro vai para um lado e o táxi vai para o outro. E a conversa rola solta ali, com o taxímetro do tempo devorando preciosos minutos.

E as carretas? Quase sempre são senhoras grandes e espaçosas, carregando sacolas, pacotes e bolsa. Andam numa vagareza de dar inveja a baiano. Tomam a pista toda, oscilando ora para a direita, ora para a esquerda... sem o mínimo interesse de dar passagem a quem está seguindo atrás. Você tenta cortar pela esquerda, lá vem o Fusquinha invocado. Não dá pra passar. Aí, você volta pra trás da carreta. De repente, ela tende para a esquerda, liberando a direita. Lá vai você, numa passagem perigosa e proibida. Dessa vez, é um engarrafamento de fila de banco que impede a passagem. E está você de volta, obediente ao ritmo da carreta.

Irritam também os carros inexperientes, andando devagar e sem rumo na calçada. São aquelas pessoas que caminham vindo de não sei onde, indo não sei como e andando não sei pra quê. São distraídas, encantam-se com vitrines, enfeites, roupas... O que mata nessas pessoas é quando elas param sem mais nem menos, bem no meio da calçada. O carro morre ali mesmo, sem pisca-alerta. Ou ainda: param de repente e resolvem voltar pela mesma via, sem dar seta avisando que vão fazer retorno. Quando não acontece trombada, acontece abraço com quem vem vindo atrás.

Às vezes, quando ando atrás de um desses carros vagarosos, uso uma buzina natural e orgânica: uma leve tosse ou uma raspadinha na garganta. É infalível: o cara da frente acaba dando passagem.

O tráfego intenso nas calçadas cansa e estressa. Por outro lado, resta um bom consolo: se há esbarradas, não há aquela amolação toda de boletim de ocorrência, acionamento de seguro, serviço de oficina... se há ultrapassagem perigosa, não acontecem mortes nem palavrões. Nunca vi ninguém brigar na calçada porque o outro ultrapassou pela direita.

Não nego que de vez em quando ocorrem acidentes sérios, como gente que tropeça, cai e se machuca... gente que entorta o pé num buraco da calçada... gente que morre enfartada enquanto caminha... outros sofrem encontrões violentos... Mas isso é fatalidade. Ninguém caminha tenso, pensando que essas desgraças vão acontecer.

Desculpem-me os rapidinhos, mas o meio de transporte mais seguro não é o avião, e sim o pé no chão.