A Teia do Mundo

A mulher é líquida

25 de Outubro de 2022, por José Antônio 0

Se a humanidade é de barro, o homem é pó e a mulher é líquida.

 

Mulher é água nascente. Forma oceanos e rios dentro de si. Marés e redemoinhos que ameaçam tragar e, ao mesmo tempo, refletem o firmamento.

 

Mulher é água de chuva. Revela apenas a cortina das nuvens... mas fica com os segredos do céu.

 

Mulher é água de lágrima. Às vezes doce... quando se encanta; às vezes ácida... quando argumenta; às vezes inebriante... quando se permite; às vezes amarga... quando agredida.

 

Mulher é líquida no sangue que flui, mostrando que ela pode gerar. Mas mulher também é líquida no sangue que borbulha, fervendo a revolta de milhares delas assassinadas, estupradas, esbofeteadas... Mulher é líquida nesse hematoma social, pois é sangue que não coagula: invade nossas veias e artérias numa transfusão que clama por justiça e respeito.

 

Mulher é líquida no leite que sustenta. Seios inesgotáveis que não deixam a humanidade perecer. Seios que mantêm a temperatura e o equilíbrio de seu leite na energia constante e mágica de um coração que pulsa bem perto deles.

 

Mulher é líquida no suor que sai de seus poros na luta para se manter, na luta para educar, na luta contra o preconceito, na luta para a conquista de seu lugar, na luta contra o desrespeito, na luta contra o luto.

 

Mulher escorre, percorre, concorre, socorre, discorre, recorre... Mulher só não corre... da raia.

 

Por sua natureza, a mulher consegue ser gasosa, sólida e líquida. Gasosa, quando algo não lhe interessa mais. Ela vira vapor e desaparece como bruma que se esvai. Sólida, quando seus sentimentos são traídos e ela se condensa toda no bloco resistente de sua dignidade. Líquida, pois, sem ela, nós homens seríamos a triste areia da ampulheta, que se distrai monotonamente com a sua própria secura.

Canção de amor

21 de Setembro de 2022, por José Antônio 0

Foi uma canção simples, poucos acordes. Nela couberam os sonhos que mais doem, aqueles que são sonhados sabendo que serão sempre sonhos. Sussurros doces e sádicos que toda ilusão sibila do jeito que só ela sabe fazer.

Como toda garota que se assusta com uma alegria inesperada, teu coração saltou do peito para dançar nos olhos. E aceitaste a canção que te ofertei. E sorriste. E foste para casa levando a certeza de que a primavera fora criada somente para ti. E foste.

O tempo passou, os dias não ficaram.

De tanto cantar, acabei decorando aquela canção, assim como decorei cada centímetro de tua lembrança. Cantei para contar... para contar a mim mesmo que é possível imorrer as coisas que não vivem mais.

Aos poucos, as circunstâncias nos levaram para trilhas diferentes. De longe, ainda pude te ver algumas vezes; não perto, pude ouvir em raros momentos a tua voz.

Os teus encantamentos já eram por outros motivos. Tuas alegrias de menina sapeca não eram mais para a minha canção. Em teu jorro de vida, eu não navegava mais.

Eras outra.

Muitas outras noites e dias vieram, fazendo do calendário uma constelação formada por estrelas de fumaça que se apagam com o sopro do inevitável.

A noite estava fria, era noite de inverno, igual àquelas em que tantas vezes conversamos e rimos, loucos para o dia seguinte chegar rapidinho para de novo nos vermos. Foi numa noite de inverno. Do meu discreto lugar, convidado sem muita importância, observei-te subir para o altar. Deslumbrante noiva!

O mesmo olhar daqueles tempos, o mesmo sorriso das tuas alegrias.

Caminhavas feliz para o teu par.

E o meu par de olhos sem par moveu-se para dentro de mim. Uma suave canção impregnava a igreja de emoção e paz. Uma flauta sublimava meu coração em forma de prece que reza o passado.

Na cadência melíflua da flauta, eu me retirei sutilmente, como o instrumento que se cala quando já não mais deve soar na partitura do concerto.  

Eu já estava a alguma distância da igreja, mas ainda podia ouvir, apesar do vento frio, os sons dos acordes da flauta suave que iam sumindo aos poucos.

Silêncio.

Apenas o vento.

Apenas o frio.

Apenas eu.

Cantei baixinho, pela rua solitária, aquela canção que um dia eu fiz e que te entreguei.

Depois não cantei mais.

Ela se despediu e se recolheu... lá onde morrem as canções de amor.

O trânsito... Sempre o trânsito

17 de Agosto de 2022, por José Antônio 0

Andar a pé é como andar de carro. As calçadas são as rodovias e as pessoas são os automóveis.

Tem gente que é Fusquinha invocado, Fiat Uno apressado ou mesmo Gol turbinado. Franzinas, ágeis e movendo-se sempre com pressa, trafegam com destreza por entre os transeuntes, numa rota obstinada e sinuosa. Passam raspando, reclamam ferozmente da demora de quem para na frente e estão sempre de quinta.

Há também os táxis. São aqueles que andam, param com alguém e saem levando. Adoram uma companhia. Vão aonde o outro vai. Se o cara entra na loja, o táxi também entra; se o cara vai fazer um lanche, o táxi espera a última mastigada do companheiro; se o cara vai ao banco, o táxi o acompanha na fila. Geralmente, os táxis de duas pernas apreciam parar em encruzilhadas, no momento em que o passageiro vai para um lado e o táxi vai para o outro. E a conversa rola solta ali, com o taxímetro do tempo devorando preciosos minutos.

E as carretas? Quase sempre são senhoras grandes e espaçosas, carregando sacolas, pacotes e bolsa. Andam numa vagareza de dar inveja a baiano. Tomam a pista toda, oscilando ora para a direita, ora para a esquerda... sem o mínimo interesse de dar passagem a quem está seguindo atrás. Você tenta cortar pela esquerda, lá vem o Fusquinha invocado. Não dá pra passar. Aí, você volta pra trás da carreta. De repente, ela tende para a esquerda, liberando a direita. Lá vai você, numa passagem perigosa e proibida. Dessa vez, é um engarrafamento de fila de banco que impede a passagem. E está você de volta, obediente ao ritmo da carreta.

Irritam também os carros inexperientes, andando devagar e sem rumo na calçada. São aquelas pessoas que caminham vindo de não sei onde, indo não sei como e andando não sei pra quê. São distraídas, encantam-se com vitrines, enfeites, roupas... O que mata nessas pessoas é quando elas param sem mais nem menos, bem no meio da calçada. O carro morre ali mesmo, sem pisca-alerta. Ou ainda: param de repente e resolvem voltar pela mesma via, sem dar seta avisando que vão fazer retorno. Quando não acontece trombada, acontece abraço com quem vem vindo atrás.

Às vezes, quando ando atrás de um desses carros vagarosos, uso uma buzina natural e orgânica: uma leve tosse ou uma raspadinha na garganta. É infalível: o cara da frente acaba dando passagem.

O tráfego intenso nas calçadas cansa e estressa. Por outro lado, resta um bom consolo: se há esbarradas, não há aquela amolação toda de boletim de ocorrência, acionamento de seguro, serviço de oficina... se há ultrapassagem perigosa, não acontecem mortes nem palavrões. Nunca vi ninguém brigar na calçada porque o outro ultrapassou pela direita.

Não nego que de vez em quando ocorrem acidentes sérios, como gente que tropeça, cai e se machuca... gente que entorta o pé num buraco da calçada... gente que morre enfartada enquanto caminha... outros sofrem encontrões violentos... Mas isso é fatalidade. Ninguém caminha tenso, pensando que essas desgraças vão acontecer.

Desculpem-me os rapidinhos, mas o meio de transporte mais seguro não é o avião, e sim o pé no chão. 

A, E, I, O, U DO CASAMENTO

21 de Julho de 2022, por José Antônio 0

Sempre que passo em frente ao foto perto de minha casa, vejo o retrato de uma noiva. Sorrindo, como se estivesse flertando com a felicidade. Como toda noiva, essa também é bela. Bela e vestida de branco.

Da fotografia para a vida real. Sempre aos sábados à tardinha, qualquer igreja está às voltas com pessoas bem vestidas, cabelos molhados e esticados... menininhas com vestidos rodados correndo para todos os cantos... e lá dentro, perto do altar, sempre se vê um noivo, uma noiva, um punhado de padrinhos com feições de responsáveis, um padre sem pompa nos paramentos e aquele cara com a filmadora na mão, insistindo em deixar os convidados desconcertados, chegando a câmera bem perto do rosto de cada um. Do lado de fora, aquele batalhão que sempre vai mas nunca entra.

Se o casamento tem lá as suas características, ele também tem o seu A, E, I, O, U. Quando se casa para acabar de vez com a solidão, fazendo do parceiro não um ser para se amar, mas, simplesmente, uma companhia qualquer para poder ficar velho junto... ou seja, um manto para aquecer a solidão; também quando o casamento é feito para se jogar um manto sobre uma gravidez sem aliança e tem-se que salvar mais a honra dos futuros avós do que a dos futuros pais... então, trata-se de um casaMANTO.

Quando se perde o discernimento, pois a vida é só lamento e na alma não há mais contentamento... quando o amor fica mais firme do que cimento e o coração nem sabe o que é envelhecimento e o olhar só fala de agradecimento... quando o futuro vira esquecimento e o que manda é o sentimento, sendo o universo colocado dentro de um momento... tem-se aí o casaMENTO.

Tem gente que se casa jurando de pé junto que ama o parceiro, mas, na verdade, o casamento vai é lhe dar mais liberdade fora de casa, mais espaço e segurança para dar às largas o seu coração e as suas aventuras; e a mentira conquista a confiança do pobre coitado que se fantasiou de cônjuge... vê-se aí um exemplo de casaMINTO.

Mas quando se casa prometendo um forte e eterno amor ao parceiro rico, proprietário de mundos e fundos, cercado de admiradores nas rodas sociais, garantia certa para viagens caras e roupas refinadas, fazendo dele um cavalinho puro sangue para se subir, aparecer e acontecer... ocorre o casaMONTO.

Agora, tem gente que se casa pela enésima vez. Na primeira não deu certo porque houve chifre; na segunda também não deu certo porque houve morte do outro; na terceira o casamento acabou porque o amor também acabou; na quarta os parceiros bem que prometeram, mas foi um terceiro que cumpriu a promessa; na quinta a miséria entrou pela porta e os cônjuges saíram pela janela; na sexta não deu certo porque era o parceiro do primeiro casamento... agora a pessoa vai se casar de novo, com alguém três vezes divorciado. Constata-se aqui um casaMUITO.

Casamanto, casamento, casaminto, casamonto, casamuito... Só fica solteiro quem conhece apenas as consoantes.

Menino lembrando uma noite de junho

22 de Junho de 2022, por José Antônio 0

Foi numa daquelas noites de junho, daquelas em que o céu já começa a se vestir de noite lá pelas seis da tarde. As nuvens ficam cor-de-rosa enquanto pelo chão as sombras se mostram compridas, longas iguais à solidão que gosta de acompanhar a gente por toda a vida.

Era uma dessas noites de junho. O vento cortava gelado as costas dos meninos e as pernas das meninas... queimava de frio os dedos finos das moças e as mãos ásperas dos moços. O vento vinha do morro e virava a esquina. Pegava todo mundo de surpresa.

Mesmo assim, com tanto vento e com tanto gelo, o pessoal da vila não se fez de rogado. Saiu todo mundo pra ir às barraquinhas da quermesse. Música tocando no alto-falante, vestidos estampados indo e vindo, rodinhas de rapazes conversando e rindo, meninos e meninas correndo pra tudo quanto é lado, um homem gritando números em uma das poucas barracas, cheiro de quentão embriagando a alegria simples de um povoado que se contentava com a simplicidade das poucas coisas.

Uma das barracas vendia salgados. A outra, doces e canjica. A última, perto do coreto e também cheia de luzinhas acesas, vendia bebidas quentes e fazia jogos de víspora e pescaria. Praça cheia, alegre e aconchegante. Acho que por isso ninguém tinha ficado sozinho em casa. As casas estavam frias e a praça quentinha. Havia vento, mas tinha quentão.

Resolvi tentar a sorte num dos jogos. Na verdade, eu queria era tirar um prêmio na pescaria e entregar pra Ana Clara, que estava na praça havia meia hora, mas no meu pensamento um montão de tempo. Ana Clara caminhava, passava perto da barraca e nem me via. Que vontade de pegar a sua trança e pescar com ela o seu coração...

Levei a mão gelada no bolso e achei lá uma solitária moeda. Fiquei por ali, encarapitado na cerca da barraca, atento à minha pescaria. Pescador de sonho... de sonho mergulhado na serragem e que não precisa de isca pra ser capturado. Fisguei o peixinho e o peixinho escorregou. Fisguei outra vez e o danado voltou pro chão. Na terceira vez, o peixinho veio pra mim. Não é que tinha um anel pendurado nele?

Peguei o anel, soprei a poeira e fui procurar a Ana Clara. Já imaginava sua trança sem Rapunzel, seu sorriso de princesa sem castelo, perdida ali naquele povoado sem grandes perspectivas, porém única e preciosa nas minhas vertigens de infinito.

Lá estava ela! Cheguei perto e... Ana Clara já tinha anel. Não só anel, mas também um namorado. Rapaz que eu nunca tinha visto na vila. Era gente da cidade. Garanto que foi ele quem deu o anel pra ela. O anel que Ana Clara ganhou do namorado não era de pescaria nem tinha poeira de serragem.

Desci os olhos, fechando as cortinas da minha esperança. Voltei pra barraquinha da pescaria. Joguei o anel na serragem, a serragem no meu sonho e pus meu sonho num balão que estava subindo pra sumir.

O vento continuava soprando frio.