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A cara das palavras

19 de Setembro de 2018, por José Antônio

As palavras dizem mais do que estão dizendo. Há sempre uma porção de coisas que se escondem no silêncio entre as sílabas, no branco entre as letras... Só quem desconfia das palavras é que percebe essas coisas. São entidades de sentido que só baixam no centro se a gente sair do centro e ficar de lado, meio que espiando as palavras.

Um dia, comentei isso com o meu amigo Marcus Vinicius Andrade Peixoto, exímio expert em Filosofia, agora dedicado a sublimar a gnosis empírica do existencialismo rítmico da batida afro-baiana. Meu amigo filósofo, numa meditação de sábio do Pelô, cravou esta:

– O dicionário é um péssimo pai-de-santo.

Não é que o danado estava certo? O que as palavras dizem ali na lata, no branco dos olhos, não baixa em dicionário.

Por outro lado, minha velha tia Zenóbia, vetusta sábia, filósofa por natureza e natural por filosofia, sempre me diz que algumas palavras têm cara de outra coisa. E me deu como exemplo sacripanta:

 – Parece nome de bicho: O sacripanta não é um animal doméstico... A fêmea do sacripanta ovula duas vezes por mês...

A partir daí, comecei a reparar nas palavras, naquilo que elas dizem quando as pessoas estão falando outras coisas. Procela... parece chá: Tome um chá de procela que essa tosse passa.E Bakhtin? Remédio, comprimido pequeno. Dor de cabeça? Tome um bakhtin com água.

Ornejar... enfeitar! A sala estava ornejada de belos arranjos de azaleia. E o palhaço o que é? Pois é, trampolim soa a nome de palhaço. Já estudou Biologia? Lembra-se dos elementos do DNA? Então, a carabina e a cafetina poderiam estar ali, nos mapas genéticos: uracila, timina, adenosina, carabina e cafetina. Sabe o tamarindo? Não parece nome de passarinho? Malagueta... nome de parafuso. Borrasca... indivíduo medroso, cagão. E a firula? Nome de flor: No jardim, apenas um canteiro de firulas tristes e orvalhadas.

Perdigão lembra um cachorro grandão e molenga. Taturana é nome de refrigerante, périplo é salto mortal de trapezista e Viagra... bem, Viagra é igualzinho sobrenome de gente rica: Juan Carbonari Viagra! 

Olha só que mimo este texto:

O pobre homem enfim voltava à casa de seus pais. Fugira da família burguesa e rica para acompanhar um circo. Seu pai, Juan Carbonari Viagra, milionário, não concordou e mandou buscar o filho de volta. Mas ele já era o famoso palhaço Trampolim, conhecido por seus périplos triplos no trapézio. Juan Carbonari Viagra se sentiu um borrasca e desgostou da vida. Nervoso, tomou um copo de chá de procela e saiu com o carro. A malagueta da pastilha do freio estava bamba e o homem derrapou na curva e morreu num capotamento. Agora, o filho voltava para casa. Corria atrás de um arrependimento que lhe dava dor de cabeça. Nem os comprimidos de bakhtin ajudavam. Olhou por dentro do velho portão. Um tamarindo piou ao longe. As pétalas das firulas caíam suavemente, ornejando o chão com cores tristes. Alguém o conheceu: o velho perdigão, cabeça grande, corpo mole, rabo entre as pernas e sem vontade de latir nem de mover aquele corpo imenso de cachorro velho. Uma sacripanta o olhava por cima de um galho, com os olhos arregalados. A garganta secava e ele ainda tomou o último gole da latinha da Taturana gelada.

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