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Fungada no cangote e ciscadas no terreiro

23 de Outubro de 2024, por José Antônio

Quando menino, eu escutava atento as histórias da Tia Zenóbia. Lembro-me dela sempre do jeito que nunca deixou de ser: os cabelos puxados para trás e recolhidos num coque, acima da nuca. Os olhos ao mesmo tempo ternos, penetrantes, inquiridores e sádicos. Acho que Tia Zenóbia já nasceu assim. Quando ela veio ao mundo, um desses anjos que vivem nas esquinas recônditas do dia a dia disse a ela: “Vai, tia, ser Zenóbia na vida.” E ela foi.

Depois fiquei sabendo que esse anjo falou coisa parecida com um poeta também terno e sádico. Porém, Tia Zenóbia nunca o viu nem ele a ela, apesar dos dois usarem óculos.

Mas isso é assunto de família e você, leitor, não tem a obrigação de ficar engolindo essas lereias. Eu estava falando das histórias que Tia Zenóbia me contava. Minha filósofa tia começava – ou acabava – as histórias dizendo que aquilo tinha acontecido “no tempo em que os bichos falavam”. E a gente entendia que era há muito... muito tempo atrás.

No tempo em que os bichos falavam... Talvez esse tempo tenha existido mesmo. Homens e bichos convivendo e conversando harmoniosamente. Deve ter havido alguma razão, sei lá, pela qual alguém calou a boca da turma que usa rabo e só o homem ficou falando. O negócio foi tão forte que não escapou ninguém. Apenas os papagaios, araras e cocotas continuaram a arriscar algumas palavras. Mesmo assim, quando o fazem, dizem coisas desconectadas e todo mundo cai na risada. Sinto dó dos psitacídeos...

O homem sente saudade desse confabulismo com os animais. Tanto é que o bicho, vira e mexe, aparece nas nossas falas corriqueiras, como metáforas que saem das gaiolas, jaulas, poleiros e selvas do inconsciente. Já que os bichos não podem mais falar, o homem então resolve a sua nostalgia emprestando dos animais algumas partes.

Comecei a perceber isso quando me falaram que uma certa fulana anda arrastando a asa para o meu lado. Eu quase não percebo tais coisas, pois vivo voando nessas questões. O que não quer dizer que não observo o gado, em cima do muro. De vez em quando, é bom dar uma ciscada, mas nada de deixar o rabo preso.

Tem uns que ficam de galho em galho, fuçando em tudo... acabam levando coices e patadas. Depois ficam amuados. Culpa deles, que não percebem a cachorrada que fazem. Um conhecido meu resolveu dar uma pulada de cerca e foi botar chifre na mulher. Quis experimentar uma outra fungada no cangote. A patroa ficou desconfiada e, fareja daqui, rumina as ideias dali... pois ela fisgou o boi ladrão. Ele tentou enterrar a carniça, mas teve que ouvir: “Tire as patas de cima de mim!” E ele foi embora, derrotado. Pegou as coisas e caçou outro rumo. Nem um pio!

Por outro lado, tem coisa mais chata do que ficar num ambiente que não é o seu? Leovaldo, meu amigo cultivador de grilos existenciais, foi a uma festa em que o único conhecido dele por ali era o espelho. Conversava com os outros, mas o assunto empacava. Era um estranho no ninho. Aquela indiferença toda o desancou e Leovaldo viu que era um sapo fora da lagoa. Foi cantar em outro terreiro.

O ser humano... pobre criatura... Pasta para sobreviver, enfia o bico em tudo para ver se pesca algum sentido que o faça exímio. Uns até pensam que encontram e se empavonam. Pobre ex-símio!

Meu pai sempre dizia que todo mundo é caveira. Filho de peixe, peixinho é. Também penso assim. Pra que presunção? Os animais não falam. No entanto, começamos e terminamos na boca deles: nascemos no bico da cegonha e acabamos roídos pelos vermes.

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