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Meia furada

17 de Novembro de 2021, por José Antônio

Foi só eu enfiar o pé na meia que o dedão foi direto pro buraco. Ficou na janelinha, a meia foi à guerra, como diziam antigamente.

Meia furada é um constrangimento rasgado. É o atestado do desleixo, é andar descalço na pobreza desmazelada. E não adianta pensar que só pelo fato do buraco estar escondido no sapato que ninguém vai ver. Uma hora o buraco aparece, transcende as muralhas do esconderijo íntimo e ganha a praça do olhar público.

Mané Cráudio, meu amigo pagador de micos. Vira e mexe, lá vai o Mané Cráudio credenciar o pequeno símio. Meu amigo apareceu com uma luxação no pé e foi procurar o médico. Nem bem chegou e o doutor já foi mandando deitar naquela caminha sem pé nem cabeça (nem travesseiro) que todo consultório tem. Quando o Mané Cráudio tirou o sapato pra mostrar o inchaço, mostrou também o rombo na meia. Tomando todo o diâmetro do rasgo, o majestoso dedão nu, alheio a qualquer luxo ou luxação, apresentou-se altaneiro e liberto. O médico fez uma pausa e, mais pedicure do que ortopedista, falou pro Mané Cráudio cortar a unha.

E o Leovaldo, meu amigo cismado e grilado? Arrumou uma namorada riponga: vestidão colorido de seda indiana, penduricalhos pelo corpo, bolinhas coloridas no cabelo, toda zen no fumacê do paz e amor. Dentro de casa, somente descalço e assentado no chão. Na hora do chazinho, a moça acendeu uns incensos místicos e fechou os olhos pra buscar o nirvana. Quando abriu, encontrou foi o dedão do Leovaldo, preparado para o mantra.

Quanto a mim e ao buraco da minha meia... Olhei para o meu pé. Parecia um ciclope, com aquele único olho que ali se alargava. Ciclope que me fazia agora enxergar pelo pé, que me fazia ver a decadência humana no tecido puído da existência que sempre termina no buraco. Ciclope terrível que arregalava o seu único olho – único, mas é olho – sem piscar. Olho sem lágrima, que não se fecha nem pra dormir. Ciclope teimoso em olhar os andaimes do desgaste. Uns fazem disso desespero. Outros, literatura.

Meu pé, um ciclope. Meu caminhar olha pra frente e às vezes é tortuoso e feio, tal como o ciclope. Mas aprendi a fazer raios que rasgam o papel e o coração, que faíscam sentidos e não sentidos. Aprendi a olhar o que existe e a dar existência ao que olho. Meu pé é um ciclope. Ciclopé.

Antes que o buraco da minha meia virasse furo de comentários, comprei um par novo. Estreei hoje as meias novas. São bonitas, o tecido é bom e resistente. Parece que vai demorar bastante tempo até um outro buraco aparecer.  

Foi só eu sair pela porta do prédio que dei uma topada na sarjeta. Também... quem mandou colocar uma venda no olho do meu pé?

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